Primeiras páginas

        Sou Anderson Felix, autor do livro Matei minha mãe, lançado pela Kotter Editorial em dezembro de 2020. Deixei abaixo as primeiras páginas do livro.

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Matei minha mãe. Enterrei meu amigo. Sou um punheteiro de merda. Eu entendo de merda. Eu sou um merda. Antes de começar meu relato é importante deixar claro que não sou nenhum letrado e nem tenho o costume de contar histórias. Por isso não sei como começar, pois o começo tá muito atrás e a merda toda veio bem depois.

De vez em quando lembro do final. Não do final quando termina, mas do final depois que tudo acaba. Tô sempre cansado e com pouco tempo pra escrever, então talvez nem termine meu relato.

Aqui no exército a gente não faz nada de produtivo e ainda assim tá todo mundo sempre nervoso, como se a vida de um dependesse da eficiência do outro pra varrer bem o pátio.

A psicóloga me pediu pra escrever esse diário, esse… caderno de memórias. Disse que é importante a gente colocar pra fora. Essa parada de saúde e proteção. No começo achei tolice, parecia coisa de quem tá preso por um erro da justiça ou no porão se protegendo de algum vírus. Aí eu descobri que um camarada aqui do alojamento também escreve, que isso deixa ele mais vivo e coisa e tal. O maluco tomou um tiro na cara naquele atentado que teve lá na escola. Mas prometo que um dia eu conto a história dele, o negócio agora é contar a minha.

E eu preciso me sentir vivo.


 

I

 

Eu era criança quando minha tia evangélica, irmã da minha mãe, deixou lá em casa uma coleção de discos velhos sobre contos de fadas. Meu irmão descia a agulha e eu ouvia uma caralhada de vezes. Bons tempos. Aí depois veio o Caçador de Marajás e congelou a grana do pessoal, a galera caiu no desespero e era só maluco vendendo o rádio pra comprar feijão. Lá se foram meus discos.

Eu lembro pouco dessa época, tinha uns sete ou oito anos. Na real, falando agora me veio na cabeça a última vez que a minha tia apareceu aqui em casa. Não sei que porra andava a conversa que ela inventou de falar que tinha de voltar a ditadura, que naquela época era melhor e não sei o que lá. Pra quê, maluco. Meu pai não é muito de falar, mas naquele dia o bicho descascou. Chamou ela de burra de merda, mandou uma pedida de que ela não lia, porque se lesse deixava de ser evangélica. Como eu disse, eu era novo, então não manjava o que tava rolando, mas meu irmão apertava a barriga de tanto que ria no sofá. Eu ia na onda e fazia igual. Minha tia foi embora num veneno. A última vez que vi ela foi no enterro da minha mãe.

Nunca gostei de ser criança, nunca mesmo, queria crescer logo. Tolice fudida aquele pessoal da escola correndo um atrás do outro. Bando de idiotas. E eu nem tinha amigos, preferia ficar sozinho no pátio. Mas é aquela coisa, né, com o tempo os bichos cansam de correr e procuram um infeliz pra encher o saco. Eu manjava quando ia dar merda na parada. Então preferia me isolar na biblioteca. Lá nunca tem ninguém. A bibliotecária entrou em depressão depois de sofrer aborto e meteu um afastamento. Agora nem mais ela entra aqui.

Um dia, durante o recreio, veio um pessoal de branco e doou pra escola umas conservas com bichos estranhos. Os potes foram parar na biblioteca. Tinha cobra, morcego, lagartas e um feto. O guri era pequeno, tamanho da minha palma. Saquei que ele era o filho morto da bibliotecária, só podia. E como vi na televisão um cara falando que a melhor forma de se comunicar com os mortos era por telepatia, resolvi usar o método. No recreio, em vez de bater um rango, eu ia pra biblioteca, sentava na frente do feto e conversava com ele enquanto fingia ler um livro de capa verde. Nem lembro do nome, só sei que tinha a expressão filho da puta no meio de um poema. Não sabia que podia publicar esse tipo de coisa. É por isso que tô de boa aqui falando uns palavrão.

Nossa conversa era um processo cuidadoso, mas de vez em quando eu soltava um sussurro sem querer e ficava com medo de alguém entrar e acabar percebendo e eu virar o Tonho da Lua da escola.

Agora, ao lembrar dessa época, questiono como caralhos nunca dei um nome pra ele. Digo ele, pois dava pra ver o piruzinho. O meu amigo falava pouco e eu menos ainda. Em geral ele queria saber o motivo de Deus deixar aquilo acontecer… eu não sabia responder e nem me questionava.

A bibliotecária voltou certo dia. Só eu vi quando parou na frente do feto, acendeu um cigarro e caiu no choro. Na manhã seguinte, somente os peçonhentos tavam lá. Meu amigo se foi e eu fiquei.

Tá, mas por que diabos tô falando disso? Esse negócio de escrever é foda, o cara viaja na maionese, vai pra casa do caralho e nem sabe como chegou… Ah, lembrei. É o lance de botar as memórias pra fora e tal, né? Me sentir vivo.


 

II

 

Reprovei na quarta e na quinta série, tô fazendo a sétima pela segunda vez. Se eu me fuder esse ano, no próximo eu meto um supletivo. Na moral.

Na saída da escola, só eu e uma menina negra fazemos o trajeto oposto ao dos outros. A gente pega a trilha do lodo e entra na rodovia. Pra mim é de boa, porque aí posso voltar de skate pra casa. O foda é aguentar a catinga da trilha e o medo de cair na merda.

Subi no skate, empurrei com o pé e peguei impulso. Esse bairro é uma desgraça, só tem mato nessa porra. Eu passo na frente da empresa de ônibus. A placa de “não há vagas” tá sempre presa no portão, mas na real, se o cara aparece com uma carta de recomendação de vereador, pelo menos uma entrevista o vagabundo consegue.

Passo da hípica, depois tem o terreno com um punhado de mato, o frigorífico, a fábrica de sorvete, mais mato, a quadra de tênis, o posto de gasolina e tem mato deixando de ser mato pra virar prédio. Deslizo o pé pra trás do skate e paro.

Costumo levar uns cinco minutos pra atravessar a rodovia e chegar em casa, é que ainda não colocaram as barreiras pequenas no meio da pista, então é preciso esperar a hora certa aparecer nos dois sentidos da estrada. O meio-fio do acostamento onde tô parado tá pintado de verde e amarelo por causa da Copa na França.

Não faz muito tempo o seu Zica tinha um boteco do lado de cá e a maioria dos bêbados morava do lado de lá. Na real, só quem mora depois da rodovia é a minha família, a da minha cunhada e o Buba. Mas como eu ia dizendo, tinha o boteco do seu Zica aqui perto, e pelo menos uma vez por mês algum bêbado ia pro vinagre tentando voltar pra casa. Na última a parada foi feia. Um senhorzinho foi atravessar pra comprar pinga e tropeçou no próprio chinelo, não tava bêbado nem nada, mas a gaiola com o passarinho caiu da mão e o coitado parou pra juntar. O primeiro carro que atropelou só pegou de leve e o senhorzinho conseguiu ficar de pé. Aí veio o segundo. Rasgou o velho e quebrou a gaiola. O passarinho voou fazendo um esperneio. O terceiro só serviu pra acabar com a malinagem. O estrago foi tão grande que o pessoal do rabecão não conseguiu juntar todas as peças, e no dia seguinte tavam os urubus comendo a carniça no canto da estrada. Acho que é por isso que o seu Zica nunca vendia fiado.

Um dia a mulher dele descobriu que no fim da noite quando o bar baixava as portas, o marido virava mãe pros bêbados. O casal se separou e o boteco fechou as portas pra valer. O cara virou piada, entrou em depressão e emagreceu. Alguém disse que o bicho tava com Aids e o pessoal nunca mais chegou perto pra tirar onda com a cara do maluco.

Foi mal, vou tentar não fugir muito pra essa porra não virar conversa de madame.

Meu cachorro Tobias me esperava na boca da rua. É um vira-lata caramelo. Logo no primeiro dia dele lá em casa fiz questão de ensinar a nunca atravessar a rodovia. Demorou um pouco pra aprender, porque no começo são bem ativos e adoram andar atrás da gente, mas consegui.

O Buba e o mudinho almoçavam na calçada do galpão. Acenei pra eles. Tobias abocanhou de brincadeira a roda do skate quando peguei na maçaneta da porta de casa.

“Pronto pro primeiro dia, Samuel?”

Puta merda. Enrolei esse tempo todo e esqueci de dizer meu nome, mas agora cê já sabe. Samuel dos Passos.

Me virei. Era a dona Angélica ajoelhada na varanda, fazendo a Velha Coroca da mãe dela engolir um aviãozinho de mingau. A casa fica bem de frente pra nossa. Na real, a casa dela não é dela e a nossa não é nossa. É tudo do Buba. Ele aluga pra gente. Quando abro a porta pra ir pra escola de manhã, tá lá a Velha Coroca olhando pro nada pelo canto da cortina da janela. De noite o bagulho fica mais sinistro, parece gato vendo espírito. Dona Angélica parou com a colher na mão como se esperasse pela minha resposta. Que diabos eu podia dizer? A gente nunca tá preparado pra porra nenhuma, até fazer. Mas aí meu irmão apareceu na janela e me salvou.

“Sempre tá. O guri não é fraco, não.”

Meu irmão vive me livrando dessas situações. Não sou muito sociável e ele sabe. Nunca fui. Até em casa eu falo pouco. Deve ter uma meia dúzia de gente que eu consigo ter alguma prosa, e ela não é uma delas. Nada contra. É uma pessoa boa e tudo, nos ajudou bastante. Foi a dona Angélica quem me deu o Tobias quando abandonaram ele num quarto do motel que ela e a minha mãe trampavam. Mas o foda é a dona sempre carregar a Velha Coroca pra todo lado como se fosse uma parte do corpo.

Acenei pra me despedir da dona e entrei. Meu irmão começava a vestir o uniforme do mercado. Esperei a camisa cobrir o rosto, larguei o skate, fui na maciota e acertei um soquinho nas costelas dele. Vestiu rápido, tomou posição e levantou os punhos. Joguei a direita pra trás e tentei um murro de leve. O bicho esquivou, me agarrou e mordeu minha orelha. Depois da luta do Tyson com o Holyfield, tudo quanto é vagabundo fica com essa palhaçadinha.

“Se tu brigar com alguém desse jeito,” disse o meu irmão “o cara vai te comer na bicuda. Não podes jogar o braço pra trás. O primeiro soco tem que ser rápido pra assustar o maluco.” demonstrou “No que ele tiver assustado, vais ter tempo de jogar pra trás e meter a bomba na cara do cara. Se acertar no nariz é caixão.”

“E se ele não cair com a porrada?”

“Tava só esperando tu chegar pra te mostrar um som. Chega aí.”

“Mas e se o vagabundo não cair?”

Fomos pro quarto dele. Abriu o guarda-roupa e a naftalina tomou conta. Tirou um CD no meio da bagunça e pôs pra tocar no Gradiente. Sentamos na cama. Três toques na baqueta e começa a paulada com o baixo acompanhando o bumbo. Meu irmão simulou a entrada da guitarra de forma bem sincronizada.

“É tu que tá tocando?”

Aumentou o som e confirmou com a cabeça, sem parar com os movimentos. O volume tava muito alto e fez a casa de madeira tremer, cheguei a sentir cocô de cupim caindo do teto pros meus joelhos. A banda manteve a sequência e aí o vocalista entrou. A voz era uma delicada fúria, a extensão natural sem esforço. Meu irmão é um baita músico, mas no momento tudo foi ofuscado pelo brilho do canto.

Stop.

“O que achou?”

“Caralho. Que som foda.”

“A gente gravou no estúdio e depois mandamos pros clubes.”

Pegou um maço de folha embaixo da cama e me entregou uma. Era o cartaz de divulgação do show da banda dele, os Cães de Guerra. Perguntei onde era o lugar, um tal de Plata Club.

“É no continente. Uma casa bem porqueira, mas já é um começo.”

Olhei a data. Era domingo agora. Daqui dois dias.

“A gente conseguiu fazer uma boa divulgação, colamos cartazes em um monte de poste. Mas tu curtiu mesmo o som?”

“Sim, sim. Porra. Pra caralho. É bem crítico, né?”

Na real, só falei, porque o refrão era: “Prefiro não. Prefiro não”. Fiquei mais atento pro som e não pesquei tanto a letra.

“Claro, pô. Tem que ser. Foda-se o sistema.”

“Rock na veia, pagode na cadeia.”

“Tapa na cara da burguesia.”

A gente sempre tira uma com essas frases manjadas.

“Afina o meu violão?” pedi.

“Pega lá.”

Creio em deus pai. Meu quarto fedia a sebo. Abri logo a janela e peguei a viola embaixo da cama. O violão na real é dele, mas sempre fica comigo, então é meu. Tobias quase arrebentou a corda ao pular em cima pra brincar. Eu disse pra ele que depois eu dava uma atenção e o bicho sossegou.

Meu irmão olhou no relógio, tava perto de se atrasar pro trampo, mas a hora de sair mesmo é só quando a Denise chega. Depois que matei nossa mãe, ele decidiu se dedicar aos estudos. Passou no vestibular e tá fazendo Direito pela manhã. Agora, quase nunca tem tempo pra porra nenhuma, e se não tá com a banda ou no mercado, tá com a cara colada num livro gigante. Queria eu ter esse empenho pros estudos.

Pôs o pé na cama e afinou o violão no colo. Ele afina de ouvido, e se a vibração muda, já sabe até se vai chover. Fico de cara com um troço desses. Tô aprendendo ainda, de cabeça só sei tocar Flores, dos Titãs, e aquela do batendo na porta do céu.

Denise entrou, já é de casa faz tempo. Ela e o meu irmão trabalham juntos no mercado. Eles ficaram pela primeira vez na festa aqui da rua quando o Brasil ganhou o Tetra, uns dois meses depois da família dela ir morar aqui na frente. No começo eu achava a Denise gostosa pra caralho, tocava várias punhetas no cantinho da janela do meu quarto olhando ela pôr as roupas no varal. Mas foi só ela namorar com o meu irmão que eu perdi a vontade. A mina deu um puta auxílio com a limpeza aqui de casa depois que matei minha mãe.

Calcei a bota, peguei a bacia do lado do fogão e chamei o Tobias. Fomos pelo caminho atrás de casa. A trilha de noite parece filme de terror. Passamos pelo canavial e o vento ficou mais gelado. A terra tava toda lamacenta. Antes de chegar na água do mangue, consegui ver o esconderijo dos gatanhões. Eles são parentes dos siris, pra ti que é leigo. Gosto dessa palavra. Leigo. Meu professor de português sempre usa quando quer chamar alguém de burro. Tobias acelerou todo endemonhado e cheirou toca por toca. Começou a cavar e jogou lama pra todo lado. Saí de perto, esperei e aproximei quando vi o vagabundo tentando fugir da toca. Tive de ser rápido, porque se o Tobias morde é caixão, e porra, eu quero o gatanhão inteiro. Agarrei o vagabundo. O maluco é feio pra caralho, parece o Predador. Joguei pra bacia.

O bom é vim na maré alta, porque as tocas ficam bem abertas e não são profundas, dá pra meter a mão e pegar de boa. Mas se a maré baixa, eles vão pros outros cantos com mais água. E como o papai aqui sabe disso e tem a manha, nunca volto pra casa sem uns cinco ou trinta deles na bacia.

Consegui pegar dezoito, um maior que o outro. Chego em casa e coloco no congelador da geladeira. Prefiro assim, pelo menos eles morrem sem eu ver. Com a minha mãe não tinha esse arrego todo não, mandava pra panela e não queria nem saber. Os bichos tentavam sair e ela apertava a tampa com tanta força que chegava a estufar a veia do pescoço. Deve ser foda morrer cozido. Mas é como diz o velho samba: “antes ele do que eu”.

Pus a bota no tanque, fechei a janela do quarto e coloquei o VHS Quatro garotas tímidas fazendo o que o diabo gosta. É um pornozão bem caseiro e tem umas atrizes com cara de mulher que a gente encontra em qualquer rua. A primeira é toda perfeita, mas o vagabundo fica lambendo a bucetinha só na ponta da língua. Tá com nojo de chupar buceta, então vai chupar caralho. Não fode. Passo pra frente, boto o pau pra fora, toco um pouco e aperto o pau. Passo pra frente. Ela chupa o cara. Toco mais um pouco e aperto o pau. Olho no meu relógio do exército, preciso ser rápido, vou pra hípica daqui a pouco. Ele pega ela de quatro e dão um close na pombinha cabeluda. Toco. Toco. Eu vou gozar. O negócio tá vindo. A minha mãe também. Esse é o preço. Eu vejo a cabeça da minha velha, parece uma melancia estourada no asfalto. Aperto o pau. Aperto mais forte. O cara mete no cu, ela se assusta. Os miolos fizeram uma trilha com a freada do caminhão. Eu tô gozando. A baga do olho tava toda pra fora. Eu começo a me contorcer pra agarrar a porra. O cara soca forte no cu da mina. O Buba me segura e o Mudinho tenta tapar meus olhos pra mim não ver. Eu preciso dar uma olhada, foi a merda que eu fiz. Não era pra ser assim. Mas é o preço.

Lavo as mãos no banheiro e desligo o videocassete. Abro o compartimento de pilhas do meu mini system e retiro o saquinho de palheiro e o isqueiro. Pro meu pai, só comecei a fumar depois que matei minha mãe. Na verdade, eu fumo desde os nove anos, apenas fazia escondido. Fumar mesmo, de ser todo o dia, aí sim, foi depois. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Meu pai ficou mais ausente e eu tive mais tempo pra fumar. Não culpo ele nem nada. A vida é como é porque as coisas são como são.

Era pra mim esquentar o arroz pro Tobias. Não vai dar tempo. Ele não se importa, come tudo e lambe a cumbuca numa boa. Fecho a casa e deixo o meu amigo do lado de fora. Prefiro ele livre. Nunca precisei me preocupar, pois o pessoal cuida dele, o Mudinho e o Buba não deixam o Tobias ir pra estrada.

Essa época do ano é bem fria, eu devia levar um casaco, mas a temperatura na ilha é estranha. De vez em quando o cara sai de casa todo encolhido e volta suado. E o contrário também acontece.

Encontrei o Cobrador voltando pra casa. Ele é irmão da Denise. O bicho é estranho pra caralho, parece um pino de boliche arrastando os pés. Quem vê diz que o coitado bateu concreto o dia todo. Na real só fica sentadinho passando troco e girando a catraca.

“E aí, viadão.” diz ele.

“E aí, bichona.”

“Só de boa?”

“Naquelas.”

Aperta a minha mão, mas nem paro. O maluco só fala merda. O Tobias não gosta muito dele não e de vez em quando até tenta morder a pochete de câmbio-dólar do vagabundo.

A casa do Buba é a primeira da rua. Ele tira um sono nessa hora, por isso bato na porta com força. Faço pra avacalhar mesmo. Que se foda. O bicho ganhava uma grana jogando no Avaí, disse meu pai quando eu era criança. A gente sabe, time regional não paga bem, então é só uma grana melhor que a de um fudido qualquer, aí fica essa impressão de que o cara tá na vida mansa. Aumento a força da batida. Um dia ele teve uma pereba no joelho e pendurou as chuteiras mais cedo. Logo depois passou num concurso e virou bancário. Ficou um tempo panguando de boa, até o chefe falar uma parada racista pra ele. O Buba meteu o patrão no pau e ganhou a bolada.

“FBI. Abra ou arrombaremos.”

Ele abre na lerdeza, com os olhos quase fechados pra proteger da luz do dia.

“Arrombado vai ficar teu cu, se tu fizer isso de novo, seu filho… seu animal.”

Ele ia me chamar de filho da puta. Sacou, né?

“Preciso da serragem.”

“Porra, laranjão pra caralho. Por que tu não pegou antes? Fala lá com o Leandro.”

“Pode crê, meu chapa.”

“Vai ti fuder.”

Virou as costas e fechou a porta.

Dei a volta na casa e entrei no galpão, vi o Mudinho estirado na bancada dormindo de cu pra cima, parecia um mendigão do caralho. Ficou surdo aos quatro anos por causa de uma meningite. Quando entrei no pré-escolar, ele fazia a terceira série pela última vez, depois abandonou, não conseguia entender porra nenhuma mesmo. Começou a fabricar móveis com o Buba logo em seguida, pois a mãe dele deu a condição: ou trabalha ou estuda. Os caras nunca param. Sempre aparece algum bacana com cara de leite, mostra umas medidas, volta pra casa, dá uma cagadinha e espera a parada chegar.

Esquivei das serras, passei por baixo do maquinário e fui até o fim do galpão onde ficam as madeiras que viram serragem. O saco já tava separado, só reforcei a amarração e pus nas costas.

Sinto uma lomba antes mesmo de entrar na rodovia, mas não tem jeito, é só seguir em frente e fumar o palheiro com o vento dos carros ardendo meu nariz. Dependendo do quanto conseguir pela serragem, vou comprar um par de pilhas no mercado e talvez sobre dinheiro pra uma fita K7 virgem no camelô. Tá foda fazer qualquer coisa sem o walkman. Eu podia pedir pro meu irmão, ele consegue as pilhas na boiada, mas o cara já faz bastante por mim. No próximo mês, quando eu pegar salário cheio, quero comprar também uns panos da hora. Até lá vou dando os meus pulos.

Uma bola de tênis quica no chão, passa na minha frente e gira devagar pra estrada. Eu podia pegar sem esforço, mas prefiro ficar na maciota. Com o canto do olho, percebo o cara de Astolfo agarrando a grade. Ele grita pra mim pegar. Roland Garros fez muito vagabundo querer ser o novo Guga. Continuo em frente. Pau no cu dele. O maluco corre pra sair da quadra, passa o gramado e acelera mais ainda. Um carro atropela a bola e o desgraçado berra feito filho da puta. Outro carro passa por cima e ela se escangalha toda. Diminuo os passos só pra ouvir o choro do boca de gaveta. Se vier falar um ai, vou dar uma cotovelada pra explodir o crocante do nariz. Mas o Astolfo só bate com a raquete no ar pra encenar a irritação pro papai e mostrar que tá virando mocinho. Tapa na cara da burguesia.

Parei na frente da hípica. O guardinha botou o cabeção pra fora, olhou o saco e me mandou entrar. Puxei o ferrolho do portão e segui. Entrego serragem pro seu Ícaro uma vez a cada dois dias, ele é o grandão da porra toda. Na semana passada perguntou se eu conhecia alguém pra limpar a merda dos cavalos. Só conheço eu mesmo, respondi. Cento e cinquenta pila por mês. Vou trampar na maciota. Já tô no lucro. Só não vai assinar a minha carteira porque tenho quinze anos. Muito novo pra função, disse ele.

“Samuca.” olhei pros lados procurando pela voz “Aqui na baia.”

Encontrei ele vacinando um cavalo. Cada casinha tem uma placa indicando o nome do pangaré, aquele era o Fittipaldi. Só de chegar perto sinto uma ardência nos olhos. O cheiro de urina é terrível, uma sensação de travar a garganta.

Me entregou um molho de chaves.

“A quadrada é a do teu armário, o número sete. O uniforme já tá lá. A redondinha é a do banheiro. Troca de roupa e vem aqui pra gente começar.”

Deixei a serragem ali e fui vestir o uniforme, um verde morto, parecia roupa de presidiário. O Fittipaldi tava amarrado no corredor da cocheira. Passei por ele com cuidado pra não tomar um coice na testa e entrei na baia.

“Hoje é só treinamento. Vai ter dia que eu vou precisar de ti de manhã e vai ter dia que eu vou precisar de ti só de tarde. Isso por enquanto. Depois que tu voltar das férias da escola, aí tu fica só de tarde. Então vamos lá. Primeiramente, limpar uma baia não é só limpar uma baia…”

E assim, conforme me ensinava, eu aprendi e fui fazendo. Serragem é o melhor tipo de cama pro cavalo. Antes de mexer no ambiente, a primeira coisa a fazer é pôr a luva e retirar as bolotas de esterco. Com o ancinho eu levanto a serragem e procuro pela urina, a parte mais escura. Depois arredo a cama seca pra não misturar com a parte mijada. Com a pá eu pego o que não serve mais e jogo fora. Limpo o bebedouro com uma esponja. Despejo, espalho e bato um novo saco de serragem pra ficar nivelado.

Pus um pequeno fardo de feno perto da bica. Seu Ícaro colocou o Fittipaldi de volta na baia e fomos pro quartinho da ração. O negócio precisa tá sempre limpo, sem desculpinha. Na parede ficam as pranchetas com a quantidade de comida pra cada cavalo. Isso varia, é claro, e quem define a variação é o tratador. O tratador é o seu Ícaro. Também tem os banhos. Nessa hora ele disse que eu não faria tudo sozinho. Tem uma menina lá atrás… e aí vocês vão revezando.

A menina jogava água no cavalo… e nem era menina, já era mulher fazia tempo. Depois de olhar pra cara dela, dou uma conferida na mão. Usa aliança. Mas da minha punheta tu não me escapa, sua sem vergonha. Parou de escovar o animal, se apresentou e explicou a forma correta de banhar o bicho. Uma mangueirada rápida pra água passar pelo sebo e deixar o cavalo úmido. Começa pelas patas pra ele acostumar com a temperatura. Coloca bem pouco shampoo no balde e passa a esponja pro pangaré ficar coberto de espuma. O complicado é limpar embaixo, o animal faz uma careta de quem tá gozando. Lava a cabeça do cavalo e depois escova enquanto mangueira o resto do corpo. É nesse momento que escorre a água cor de merda. Por último passa o rodo no bicho pra tirar o excesso e ele secar mais rápido.

Dia cansativo do caralho. Não fode. Só de me abaixar, minha coluna já peidava de dor. A mulher saiu inteira, sem nenhum gemido, e devia ter o dobro da minha idade. Contou que trabalhava na hípica desde os dezoito e só ia sair depois de quitar o empréstimo com o seu Ícaro. Ela e o marido compraram um terreno e agora tavam construindo a casa. Nos despedimos, a mulher foi pro sul e eu segui o meu caminho pro norte no frio do fim da tarde. Quando peguei uma distância maior, manquei sem pena o pé direito e levantei a poeira do acostamento. O primeiro dia é sempre o mais desgraçado, disse o Buba uma vez. Parei por um momento, joguei fumo na seda, enrolei e acendi o palheiro enquanto via o sol baixar no Monte Verde. Meu corpo tava fudido e a vontade de deitar ali mesmo e ficar era grande. Ao menos consegui um trocado pelo saco de cinco quilos de serragem. Continuei mancando no meu rumo quando um carro buzinou e alguém de dentro gritou: “Mad Max.” Conheci a voz. Era o meu irmão e a Denise com o Monza no acostamento do outro lado do asfalto.

“Carona?”

Olhei pra estrada e calculei a velocidade dos carros. Levei em conta o agravante do meu pé fudido e fiquei na incerteza se conseguiria atravessar sem virar hamburguer no meio do caminho. O pneu cantou e o Monza arrancou invadindo a pista. Fez o contorno de uma ferradura no asfalto e parou bem do meu lado. Nem ouvi o que a Denise disse, tudo era só barulho de buzina dos motoristas indignados. Joguei o cigarro fora. Ela abriu a porta, inclinou com o banco pra frente e me joguei atrás. De novo cantou pneu, com um pouco mais de cuidado dessa vez. A ferradura agora era um círculo no asfalto. A hípica não é longe de casa, menos de um quilômetro, mas pro meu pé espinafrado, a carona foi a salvação do dia.

O carro parou no terreno e Denise foi correndo pra casa dela. Fiquei sem entender. Devia tá apurada pra dar um mijão ou algo assim. Tobias aproveitou a porta aberta e pulou no meu colo.

“Aconteceu alguma coisa?” eu quis saber.

Desligou o carro e jogou a cabeça pra trás como se quisesse descansar.

“E a guria do 145?” perguntou.

“Quando o pai chegar, vou pegar o cartão com ele e ligar pra ela.”

“Sobre o que vocês conversam?”

“Só tolice. Falou que comprou um caderno do Vavá.”

“Quem?”

“É um desses pagodeiros do caralho.”

“Que merda, hein? E como ela é?”

“Não sei, nunca vi. Mas qualquer coisa, eu meto uma sacola de pão na cara dela. O importante é ter buceta.”

“Não diz isso. Não é legal. Pode ser que a guria não seja aquilo tudo, mas seja uma mina massa.”

De vez em quando meu irmão fala como se fosse a nossa falecida mãe. Na real, passo a noite na punheta só pensando em mim e na Aninha juntos, e eu nem sei como é a cara da desgraçada. A gente anda de mãos dadas no shopping, surge uma briga por um motivo tolo, eu grito o quanto amo ela. Bryan Ferry canta Slave to Love. As famílias gordas ao redor aplaudem. Eu agarro o rosto dela e nos beijamos como se fosse a última vez. Vamos pro quarto, a gente faz amor e depois se casa. Aí a fita K7 enrosca, a música para e eu tô sem caneta. Ninguém conta essa parte. Pau no meu cu.

“E como eu vou saber se é uma guria massa antes de ver ela?”

Ficou um tempo em silêncio como se tentasse buscar uma resposta.

“Usa a técnica do gatinho. Não vai garantir, mas vai te dar uma ideia.”

Tirou uma revistinha de violão do porta-luvas. Saímos do carro e entramos em casa enquanto ele explicava a técnica. A Velha Coroca nos olhava pelo canto da cortina da janela. Perguntei pro meu irmão se ele tinha medo dela, o bicho nem deu moral. Tirei uma lasanha pronta do congelador e coloquei pra esquentar no micro-ondas. Tobias balançou o rabo quando viu, ele adora comer besteirinha. Meu irmão foi pro meu quarto e depois voltou com o violão.

“Porra. Tua cama tá numa catinga de punheta. Essa merda ainda vai te dar um câncer no pau.”

Sentei no sofá da sala e coloquei a viola no colo. Tobias veio bater com a pata nas cordas, o vagabundo sempre faz isso. Meu irmão abriu a revista e mostrou uma música do Skank. Porra, essas bandas de hoje é coisa pra comedor de Polenguinho ouvir.

“E essa aqui tem pestana.” disse eu.

“A melodia é mais lenta. Tu vai conseguir.”

“Esse Fm eu nunca vi.”

“Essa porra não é rádio, não. É fá menor que chama.”

Demorei pra posicionar os dedos. Quando palhetei, saiu um som seco e sem vida. Não tinha vibração.

“Tenta palhetar mais em cima e aperta o indicador com força. Quanto mais apertar, mais limpo o som vai sair. Não se preocupa que isso é com o tempo. Depois que criar calo, tu não vai sentir mais essa dor.”

Alguém bateu na porta e ele foi atender. Era a Denise. Foquei no acorde e na sequência antes do fá menor. A minha palhetada ainda era feia e insegura pra caralho. De vez em quando dá vontade de quebrar o violão na parede, porque todo mundo consegue tocar essa merda, menos eu.

O micro-ondas apitou. Deixei a viola no canto e levantei pra pegar a lasanha. Ouvi o barulho do carro. Estranho, meu irmão costuma ficar mais tempo antes de voltar do intervalo. Bom, melhor pra mim, agora posso comer um pedaço maior.

Fui mancando pro quarto. Eu queria tomar um banho primeiro pra depois jogar Super Metroid, mas tava perto da hora do meu pai chegar, então aproveitei o tempo e coloquei o Gangbang Girl 17. O filme já começa com os caras esculachando na cara. A minha preferida é a Chloe Nicole. Eu chamo ela de Clô. Ela deixa. Ela gosta. Ela é um amor. Deito na cama e coloco o pau pra fora. Eu tô fedendo a cavalo e não posso deixar pra depois, não existe privacidade aqui em casa. Meu quarto não tem porta. Em vez disso é só uma cortina velha pra separar os outros das minhas gozadas.

O Buba ainda tava terminando a casa quando pôs pra alugar. Faltou colocar a porta no meu quarto, mas minha mãe não via necessidade. E ficou por isso mesmo.

Várias vezes ela entrava de repente, perguntava se tava tudo bem e aproximava pra ver o que eu assistia na televisão. Isso sempre interrompia as minhas punhetas, fora o risco de ser pego, porque tinha todo um processo de levantar as calças, puxar a tomada do videocassete e mudar o canal da TV. Tudo em questão de segundos. Como a casa é de madeira, eu sabia quando alguém aproximava por causa da direção do som dos passos.

Eu tinha onze anos. Minha mãe me levou na psicóloga do SUS. Lembro de olhar o Senna nas capas das revistas da mesa. Foi um ano estranho de tristeza e felicidade. A psicóloga me chamou, eu entrei e sentei na poltrona. Perguntou o motivo de eu tá ali. “Não sei”, respondi, pois eu não sabia mesmo. Chamou minha mãe e aí descobri, era por eu não conversar com ninguém. Porra, eu simplesmente não falava nada porque não tinha nada pra dizer. Só isso. Minha mãe deixou a sala, a psicóloga disse mais algumas coisas que não lembro e terminou com: “Já pensou se todos no mundo fossem iguais a você?”.

Gostei. Foi massa ela ter dito aquilo. Mas quando entrei no elevador, pensei em mim. Sempre fui viciado em punheta, comecei aos nove anos. Na época só saía aguinha de arroz. Levei a frase da psicóloga em consideração. Pronto. Imaginei todas as pessoas do mundo tocando punheta enquanto faziam coisas do cotidiano. Esquenta um presunto na chapa e toca punheta. Passa o troco com uma mão e toca uma punhetinha com a outra. Algema o bandido com a esquerda e toca uma com a direita…

Ouvi a porta de casa abrir e o barulho de sacola em seguida. Era meu pai. Chegou quando eu desligava o videocassete. Fui ver as compras. Só peixe.

“Teu irmão não tá em casa?”

“Veio, mas logo foi embora.”

Depois que matei minha mãe, meu pai e eu não nos falamos tanto. Na real, quando ela se foi, levou um monte de coisa junto. Não sei explicar direito, tem sempre um muro entre eu e ele. O último abraço foi no dia do enterro e isso já faz dois anos e pouco. Não faço questão nem nada, mas incomoda pra caralho essa coisa morta que fica em quem tá vivo. Meu pai e minha mãe se amavam bastante, sabe. De verdade mesmo. Não era o lance de se amar só quando tá feliz. Eu podia falar de vários momentos deles, mas não vou vomitar tudo agora, porque senão acabo esquecendo das outras coisas pra dizer. Sem brincadeira, o bicho emagreceu uns dez quilos nos últimos dois anos. O maluco agora é só pele e bigode. Eu quase não vejo mais ele, porque pegou um segundo trampo depois da tragédia. Um dia ele trabalha doze horas de vigia no hospital, no outro, trabalha doze fazendo a segurança num desses prédios de resolver papelada. Faz mais de um ano que não pega folga. E pra piorar, o maluco tá vendendo as férias. Eu sei o motivo. Meu pai tá guardando dinheiro pra gente ir morar num lugar melhor. A real mesmo é que minha mãe morreu e ele se enterrou junto. Mas é isso. A vida é como é porque as coisas são como são.

“Podes emprestar o cartão telefônico?” pedi.

“Que cheiro é esse?”

Abriu a carteira e entregou o cartão.

“É da lasanha.”

“Não, não esse cheiro.”

Olhei pra trás. A murrinha de punheta deve ter vazado do quarto.

“Vou dar um banho no cachorro amanhã pra ver se passa.”

“Não faz isso. Tá muito frio.”

Fui com o Tobias pra rua.

Perceberam? O bicho nem perguntou como fui no primeiro dia de trampo.

Chegamos no telefone do lado do ponto de ônibus, poucos metros depois de entrar na rodovia. A Aninha atendeu rápido.

“Oi, querido. Nossa, tava pensando em ti agora.”

Deve ser o frio. A gente se apaixona fácil no frio.

“Pensando no quê?”

“Tava vendo um comercial daquele cara que vende móveis e pensei que tu podia ser parecido com ele.”

“Não muito.” nem sei quem é o catinguento “Eu sempre te imaginei parecida com a guria da Malhação. Uma de óculos. A loirinha. Sabe?”

“Ah, não. Ela é bem mais bonita.”

Dei um tapa nas teclas. Até o Tobias se assustou com a força.

“Desculpa, meu gatinho pulou no telefone.”

“Ai, que querido. Eu amo gatos. Eles são bem assim mesmo, pulam em tudo.”

Se a vida fosse um desenho animado, a essa hora o Tobias tava pedindo carona pra qualquer canto longe de mim.

“Queres ir comigo num lugar?” perguntou.

“Claro.”

“Mas tu nem sabe pra onde é.”

O cara apaixonado faz coisa, minha filha.

“Vai ter show do Negritude. Topas?”

“Não é muito a minha praia, mas vamos nessa.”

“Não curtes um pagodinho?”

“Putz. Pagode é foda.”

“Negritude é massa.”

“Tem muita gente na banda pra pouco som.”

“Ah, é que ele gosta de ajudar as pessoas.”

Vou guardar créditos pro dia seguinte. Falei pra ela que eu precisava fazer a janta, ela me achou querido de novo. Tadinha. Só sei cozinhar ovo e esquentar água pro Nescafé.

Voltei pra casa e fui direto pro banho. Nem eu me aguentava mais. O cheiro de punheta tava extrapolando os limites do quarto. Minha mãe era quem limpava toda a casa, nem deixava eu fazer nada, e se eu tentasse, ela ficava ofendida. No início irritava pra caramba ver minha velha fazer tudo sozinha, mas depois foi ficando confortável. Hoje quem lava a nossa roupa é a Denise, só que nunca fica com o mesmo cheiro.

Esperei meu irmão voltar do mercado pra mim sair do quarto e comer alguma coisa. Quando meu pai tá em casa passa o tempo todo na cama lendo livros de espírito, mas de vez em quando vai pra cozinha pra fazer uma graça. E eu não queria correr o risco de ficar na mesa com ele, então continuei no meu quarto, toquei umas duas punhetas pra Hilda Furacão e só fui jantar no fim da noite, já tonto de fome.

Tive um pesadelo durante a madrugada. Minha mãe mandava o Mudinho dar cinco tiros no peito do Buba. Desde a morte dela, eu só durmo de luz acesa. Tenho medo de despertar no escuro e ver minha mãe em qualquer vulto.


 

III

 

Sábado são só quatro horas de trampo na hípica. Fui de manhã, pois é o período de competição. Os bacanas com binóculos mostram os dentes na arquibancada e seus filhos montados nos cavalos esperam a bandeira baixar. Hoje é dia de aprender sobre merda. A mulher tá lá atrás lavando os cavalos e eu tô aqui na cocheira com medo de trabalhar pesado feito ela. Na maioria das vezes os cavalos só tomam banho de tarde, mas quando os bacanas chegam, a gente precisa fazer uma graça. Cê vai me ver falar bastante dos bacanas. Foi o Barão Owl quem deu a letra. Já viu o episódio que ele explica pro pai do Jiraya o motivo de querer o tesouro do século? O mundo desmoralizado, os ricos cada vez mais ricos e os pobres trabalhando duro e morrendo de fome. Ele queria que a Terra fosse um lugar melhor. É meio inocente, eu sei, mas quando criança fazia bastante sentido pra mim.

Seu Ícaro mostrou as fotos tiradas das merdas na baia.

“Os cavalos cagam umas dez vezes por dia.” disse ele “Se a merda quebrar depois de bater no chão, então o bicho tá bem. Mas se aparecer marca de sangue, restinho de comida ou tiver muito seca, aí tem que chamar o veterinário”.

Perguntei se era papo sério essa parada de manjar dessas coisas só olhando pra bosta.

“Ô… e como. A merda tem muito pra dizer. A gente quando caga, por exemplo…”

E assim eu me tornei um especialista de merda.

Se tu solta um barro e sai sangue, pode ser só uma hemorroida, mas também pode ser úlcera. A merda boa é a pastosa. Se for líquida, aquelas quando o cara mija pelo cu, pode ser infecção intestinal. Não existe merda cheirosa, a gente sabe, mas se ninguém conseguir entrar no banheiro depois de ti é porque tu tá apodrecendo, irmão… é inflamação na certa. Se tiver cagando feito cabrito por muito tempo, chama a família, pois é tumor. Se vai boiar ou afundar, aí vai depender das porcarias que tu anda comendo por aí. Se a merda tiver branca é porque o teu fígado tá indo pra vala, chama a rapaziada e prepara o testamento.

“Aqueles pau no cu ali,” apontou pros bacanas “nunca vão entender disso. O negócio deles é pegar tudo pronto e fazer gracinha. Aí vem aqui encher o saco porque o cavalo não ganhou e não sei o que lá. Se me pegam num dia que eu tiver tomado um foguete, eu salpico o cu deles.”

Enquanto voltava pra casa, vi uma família de bacanas consolando a filhinha de uns oito anos por não conseguir fazer o cavalo pular a rampa. A criança se jogou no chão e o pai tentou levantar ela, quase levou uma mordida do pequeno demônio.

Cheguei na rua e acenei pro Mudinho e pro Buba. Como sempre, almoçavam na calçada. Tobias ficou na dúvida se vinha comigo ou se encurralava o rato perto da porta. Denise fazia um ensopado de gatanhão quando entrei. É estranho, dependendo da mão que cozinha, até o cheiro do bicho muda.

“Oi, querido. Senta aí, já tá ficando pronto.”

“Tô de boa. Daqui a pouco eu como.”

É uma guria legal, gosto muito dela e tudo. Só incomoda um pouco esse jeito maternal.

Fui pro quarto, coloquei a TV no mudo e um VHS do De volta para o teu furo. A segunda atriz é uma baita, peito normal, bunda normal e cara de passarinho. Gosto de mulher com cara de panaca e com cara de passarinho. Detesto essas com rostinho de boneca de porcelana. Todo mundo paga pau pra Silvia Saint. Muito perfeitinha, não curto não. Até hoje só toquei uma punheta pra ela e foi pra não fazer desfeita. A cara de passarinho se esforça pra engolir o pau do cara, mas não consegue nem passar da metade. O vagabundo dá um tapão atrás da cabeça dela pra forçar, a coitada engasga e quase vomita. A mina não curtiu a parada, dá pra ver. O otário cospe champanhe no rosto da guria. Ela encosta na mesa e abre bem as pernas. O maluco mete no cu dela com força, nem rola uma cuspidinha ou uma bucetinha antes, já enterra tudo no cu mesmo. A coitada faz uma cara de dor que até tu sente. Depois digita umas coisas no computador pra fazer ele voltar no tempo e comer ela de novo. Na última cena o vagabundo aparece todo confiante, ela coloca um comprimido no champanhe, o maluco capota e acorda algemado na cama com um consolo enterrado no cu e ela mijando na cara dele.

Eu gozo logo no início da cena. Tenho gozado muito rápido nos últimos tempos. Além do crânio esfarelado feito biscoito, tem também a perna direita quebrada da minha mãe. E só não arrancou porque ficou pendurada na pele. O caminhoneiro é o mais apavorado, estica a barba, coloca a mão na cabeça, diz que não foi culpa dele… e eu sei disso, mas não posso dizer. Ele já tá velho, viveu bastante e é feio pra caralho, ninguém vai querer comer o cu dele na cadeia. Já eu, sou muito novo pra perder a liberdade.

Limpei a mão e fui almoçar. Denise lavava a louça. Aproveitei e fui sentar de frente pro meu irmão. Mal me cumprimentou, mal me olhou. Será que brigaram? Estranho. Nunca vi os dois discutirem nesses quatro anos de namoro.

“Tô conseguindo fazer pestana no violão.” Tentei quebrar o gelo.

Chupou a perna do gatanhão e levou mais um tempo, até dizer: “É isso aí.”

“Vamos tocar depois?”

“Não dá. Vou estudar um pouco ainda.”

Coloquei arroz com molho de gatanhão na cumbuca do Tobias e deixei no lado do fogão. Ele devorou tudo rapidinho, nem deve ter tido tempo pra sentir o sabor. Tranquilo. O importante é manter o bucho cheio.

Fui tomar banho e senti uma ardência no pau quando a água do chuveiro desceu. Ele tava esfolado no pescoço. Mal sabe o coitado que vai trabalhar muito essa noite. Sábado é dia de Cine Privê e Gata Molhada. Daqui não vem ninguém, de lá também não vem… e toma-lhe punheta velha. Quem mostrar os peitinhos primeiro, ganha a recompensa. Jogo um pouco de sabão nele e já sobe o cheiro horrível de peixe podre. Eu tô é fudido. Saí do banho e percebi que tava sozinho em casa. Vesti a jaqueta jeans, pus a touca do Chicago Bulls e abri a janela do quarto pra sair um pouco da murrinha.

Coloquei um K7 do The Dark Side of The Moon pra tocar, preparei quatro palheiros, deitei na cama e acendi um. A fumaça ia ajudar a encobrir a catinga desgraçada. Tobias inventou de subir e deitar do meu lado. Fumei três cigarros enquanto viajava no som. Não sei como caralhos, mas cochilei e o palheiro queimou a orelha dele. O bicho ganiu e pulou da cama. Passei um pano com água pra aliviar a queimadura. Pedi desculpa. Era a única coisa que eu tinha.

Não tava animado pra jogar o Super Nintendo e nem triste pra tirar um sono além do cochilo. Resolvi ligar pra Aninha, ouvir a voz dela ia dar uma animada no coração.

Saí eu e o Tobias de casa. Dona Angélica caminhava em pequenos passos pelo quintal com a Velha Coroca. Deve ser uma parada difícil viver com gente assim. Pra piorar, a desgraçada da velha balançava o vestido pra cima e pra baixo como se abanasse a xoxota.

“Como foi no primeiro dia, Samuel?”

Dei uma resposta café com leite pra ela e continuei meu caminho.

Quase furei o pé no prego ao desviar dos sarrafos pra entrar no galpão. Senti um cheiro bom de madeira serrada.

“Esse buteco já foi menos bagunçado.” disse pro Buba.

“Bagunçado vai ficar a tua cara se tu vier de gracinha.”

“Gosto de ti, meu chapa, mas o teu problema é que tu é violento demais.”

Nem deixou terminar de falar, ligou a serra de bancada e passou a madeira. O Mudinho tava nos fundos parafusando um livreiro bacana. Eu e ele fomos bem amigos durante um ano inteiro, na segunda semana depois que matei minha mãe. O bicho ia lá em casa pra não me deixar sozinho e a gente passava o fim de tarde e a noite inteira jogando Street Fighter, NBA Jam e Mario Kart. Um dia apareceu com uma pequena cômoda que fez e me deu. Nunca mais o videogame ficou no chão, pois era um problema do caralho. Até lembrei agora do dia que o Tobias bateu com o rabo na fita quando eu tava a segundos de fechar o Desert Striker.

No ano seguinte o Mudinho virou evangélico e aí fudeu com a porra toda. Era só trabalho, igreja e casa. Game over.

“Me empresta um cartão, meu chapa?” pedi pro Buba.

“Já falei pra ti não me chamar de meu chapa. Não tenho. Pede pro Leandro, emprestou pro Cobrador esses dias.”

Não faz sentido o Mudinho ter cartão telefônico, a gente sabe, mas é aquele negócio do cara querer ser prestativo pra ter amigos. Isso é foda, já vi muito coração de Sonho de Valsa virar o Inspetor Bugiganga da galera.

Cheguei perto e veio apertar minha mão. Tenho um problema em tocar nas pessoas, sempre tive. Meus tios apertavam a minha mão e eu lavava. Minha vó beijava meu rosto e eu lavava. Pra mim não dá não. Uma vez, minha família tava numa festa de aniversário na casa de uma prima, e eu fiquei de boa comendo um bolo de chocolate gostoso pra caralho. De repente, uma velhinha boca murcha veio me beijar no rosto, na hora já senti o molhado. Puta merda, parada nojenta do caralho. Pra piorar, ela virou a cara. Fingi que não tinha entendido. É claro. Aí minha mãe beliscou meu braço e fui obrigado a beijar o rosto da velha. Não coloquei mais a boca no bolo.

 

Prosa ruim. Nota: 5,2. Evite a dispersão da temática proposta. Está recorrente no primeiro ato.

 

Aceitei a convenção. Apertei a mão dele e fiz um hang loose na orelha. O bicho entendeu e me emprestou o cartão. Tentou pronunciar algo, mas só balancei a cabeça pra afirmar.

“Alô, Aninha?”

“Guri do céu, só por Deus mesmo. Pensei que não ias me ligar, já tava até me dando um troço.”

Eita. A desgraçada se apaixonou mesmo.

“Eu também tava pensando em ti.”

“Vem aqui em casa.”

O coração disparou e eu travei.

“Tá. Claro… claro. Mas… eu dou uma passada aí e a gente se conhece?”

“Nãaaaao. Dorme aqui.”

Caralho. Ainda bem que guardei meu punhado de punheta. Deu uma sensação estranha, uma leveza na perna.

“Vais vim?”

Uma fome sem vontade de comer. Não sei explicar. Comecei a tremer de nervoso.

“Samuel?”

O peito queimava. A respiração ficou difícil. Precisava tomar um banho mais demorado. E se ela fosse chupar meu pau e visse as feridas? Todo mundo foge dessas coisas hoje em dia.

“Ai, meu Deus, não acredito. Samueeeel?”

Levo bebida? Comida? Camisinha? Caralho, eu nem tenho dinheiro pra isso tudo.

“Porra, responde essa mer…”

“Durmo.”

“O que foi que aconteceu?”

“Esses telefones são um cocô, vive dando problema. Mas e os teus pais?”

“Ai, querido, tão bem longe. Só voltam na segunda. Vais vim mesmo?”

“Claro. Só me…”

“Entre sete e vinte e sete e meia. Tá bom? Não pode atrasar. Anota o meu endereço.”

Eu conhecia o lugar, é a rua do centro espírita que o meu pai frequenta. O edifício dela era o mesmo onde imprimi currículo uma vez num xerox no térreo pra levar no Centro de Apoio ao Estudante. E no fim, nem consegui nenhum estágio, pois eu tava atrasado demais nos estudos.

Voltei pra casa correndo e abri o guarda-roupa. Não tinha nada decente prum primeiro encontro, então fui procurar no quarto do meu irmão. Só camisa preta de banda de rock e o uniforme do trabalho. Não dá pra pegar uma roupa maneira com o Buba, porque ele é bem maior e veste umas coisas meio Clube do Bolinha. Com o meu pai é impossível, o bicho chaveia o quarto. Que merda, cara. Isso não vai dar certo. Vou tentar com o Mudinho. Ele usa moda fóqui evangélica, mas é melhor do que chegar na guria com os meus panos de mendigo.

Um pouco antes de chegar no galpão, vi o Cobrador voltando pra casa. Eu e o Tobias disparamos na direção dele.

“E aí, viadão.”

“Só tu pra me salvar.”

“Que é que deu?”

Expliquei. O vagabundo tava mais interessado em saber se a Aninha era gostosa do que em me ajudar. Entramos na casa. Dona Angélica me ofereceu um Toddy, neguei e agradeci. Ela ficou brincando com o Tobias na cozinha enquanto adoçava o café da Velha Coroca.

Porra, o quarto do bicho era forrado com foto de mulher pelada.

“Elas não enchem o saco com isso?” apontei pra uma buceta carnuda.

“Minha vó, coitada,” bateu na cabeça “o carro tá ligado e não tem ninguém dirigindo. E a minha mãe vai falar o quê? Não sou mais guri pequeno.”

Por isso mesmo, seu animal burro do caralho. Quase trinta anos na cara e me faz uma dessas. E pelo jeito que o quarto tava arrumado, com certeza era a mamãe quem limpava tudo. Abriu o guarda-roupa e jogou umas camisas e calças na cama. Cabia dois de mim em cada peça. As mais antigas cabia um e meio. Peguei essas e joguei pras oitavas de final. As floridas e as vermelhas morreram nas quartas. As de crocodilo no peito ficaram pra trás na semifinal. A listrada venceu com dificuldade a camisa de garçom. Calça estilo primeira comunhão pra completar a tragédia. Eu tava parecendo aqueles artistas de TV que aparecem só pra arrecadar dinheiro pra salvar gente fudida.

“Escreve um poema e dá um presente pra ela. Te garanto, vai ser só tabacada na chorona.”

“Eu não sei fazer poema. Nem manjo dessas coisas.”

“Porra, tu é cabaço mesmo. Não falei pra ti fazer, falei pra ti escrever.”

Abriu a última gaveta do guarda-roupa, tirou dois livros e jogou na cama.

“Esse aqui tu vai copiar o poema Tenho Fome da Tua Boca. A menininha vai ficar molhadinha e vai te dar a pombinha. Essa rima foi da hora, né? Esse outro aqui, tu dá de presente. Diz que tu comprou na sebo.”

“Sebo?”

“O sebo do meu pau. É por isso que tu não come ninguém, não sai de casa, não conhece as coisas, não tem a manha das rua… Parece aqueles viado de apartamento com depressão.”

E me explicou o que era.

Na real, eu já sabia, mas pra mim chamava livraria de livros usados. O presente era o livro de uma tal de Zilda alguma coisa.

“E se ela já conhecer o poema?”

“Não vai. Já comi muita vagabunda com isso. A maluca vai ficar toda derretida depois de ler. Aí tu coloca o pau pra fora, bota a camisinha e é só soco na vulva. Agora te arranca, que eu quero ver o jogo.”

Puta merda, eu tava escutando os conselhos de um cara que nunca nem vi com mulher nenhuma. Me cobrou setenta e cinco centavos pelo livro.

Fiquei quase uma hora no banho. Passei shampoo de menta no pau, só pra garantir. Isso fez as feridas arderem bastante. Talvez seja melhor eu comprar uma dessas camisinhas com sabor. Se começar a esfolar na hora da foda, o aroma vai matar a catinga.

O tempo passava mais rápido do que eu esperava. Me arrumei com cuidado pra não amassar a roupa e nem sujar me encostando em algum canto. Preciso com urgência me vestir feito gente. Mesmo com esforço, fiquei estranho pra caralho de roupa social e All Star pichado de mancha. Copiei o poema. Não sou muito de escrever, cê já percebeu, mas minha letra é bonita pacas.

Sábado é foda de latão e eu ainda preciso parar no mercado pra comprar as coisas. Só no meu cu mesmo.

O céu tava limpo, não tinha risco de chover nem nada. Mesmo assim tranquei Tobias em casa pra proteger ele do frio. Dona Angélica recolhia a roupa do varal. Avisei pra ela que a Velha Coroca tentava pular a janela da cozinha pra ir pra rua. Meu Deus, gritou a dona, pedindo ajuda ao ver a mamãe toda torta. Segurei firme os braços da Velha Coroca, no fundo eu tava com nojo de tocar naquela pele enrugada fedendo a desinfetante de banheiro. Chamei pelo Cobrador, mas o futebol na televisão tava num volume muito alto. Dona Angélica se esforçou pra abrir a porta de casa sem deixar as roupas recolhidas caírem do ombro. Conseguiu puxar a velha pra dentro.

Voltei pra casa e lavei as mãos. Não tavam sujas nem nada, e cê deve tá me achando um filho da puta por isso, pois um dia também vou envelhecer e todo esse papinho. O meu problema é se toco em alguém ou beijo o rosto, não sossego enquanto não me lavar. E eu já disse isso, então não tem por que ficar me julgando. Até aceito a convenção e tudo, mas prefiro se tiver uma pia por perto, senão fico angustiado.

Olhei as horas no meu relógio do exército. Minha mãe comprou no dia vinte e três de fevereiro de 1996. Lembro da data, porque foi na mesma noite que o barranco caiu na rodovia. Porra, tá foda isso. Juro que agora não vou mais me interromper. Prometo.

Sequei as mãos e peguei meu walkman no quarto. No meio do caminho vou comprar pilhas pra ele.

Bati na casa do Buba e entrei. Tava ele e o Mudinho sentados no sofá da sala terminando de ver o jogo. O Brasil venceu o Chile por 4 a 1. Entreguei o cartão telefônico pro Mudinho.

“Buba, meu chapa, só tu pode me salvar.”

“Fala logo.”

Levantou e foi levar as latas vazias de cerveja na lixeira da cozinha. Fui atrás.

“Preciso de uma carona até o mercado.”

“Vai a pé.”

“Mas é longe… e eu preciso tá no centro daqui a pouco.”

“Foda-se.”

Foi pro banheiro e fechou a porta na minha cara. Fiquei falando enquanto ouvia o barulho de mijo.

“É uma guria. Vou dormir lá… e ela pediu pra mim chegar antes das sete e meia. Tenho que ir no mercado comprar umas coisas pra depois pegar o latão. Não vai dar tempo. Eu preciso de ti.”

Deu descarga e ouvi a torneira ser aberta.

“Não é problema meu.”

“Por favor. Eu caço uma bacia de gatanhão pra ti.”

Abriu a porta e parou na minha frente.

“Uma bacia não dá nem pro cheiro.”

“Eu varro o galpão…”

“O Leandro já faz isso.”

Segui ele até a cozinha. Pegou um garrafão vazio de vinho e foi pra garagem.

“Eu te dou uma parte do meu salário quando eu receber.”

Colocou o garrafão na carroceria da F-100, ligou a picape e ficou um tempo esquentando o motor. Eu tava parado esperando. Torci pro coração do vagabundo amolecer.

“Querias uma carona pra onde mesmo?”

“Pro mercado.”

Riscou o fósforo e acendeu um cigarro, deu três tragadas e depois esfregou a mão na testa como se tivesse pensando.

“Porra, por que não falou isso antes? Tô indo pra lá agora comprar vinho. Entra aí, meu chapa.”

“Seu pau no cu do caralho.”

Gargalhou alto. A gargalhada de um filme de máfia que vi na infância, mas esqueci o nome.

Mal entrei no carona e o bicho saiu da rua cavando. Entrou na rodovia com um pouco mais de cuidado e mesmo assim um motoqueiro levantou a pata ameaçando chutar o retrovisor da picape. Buba só deu um toque no volante e o motoqueiro se peidou todo.

“Quase matasse o cara.”

“Pau no cu dele.”

Olhei pro painel da picape e me imaginei no volante com um cigarrinho na boca.

“Se eu trabalhar por um ano na hípica, consigo grana pra comprar uma caranga dessas?”

“Não. Mas fica frio, que quando eu morrer, tu fica com a picape e o Leandro fica com o galpão.”

Saímos da rodovia e pegamos a rotatória do cemitério.

“Falei com o teu pai, ele tá preocupado. Tá achando que vais largar a escola pra ficar lavando pau de cavalo.”

“Tô pensando em fazer isso mesmo. Mas eu só limpo a baia.”

“Tens merda na cabeça, né? Vai estudar, rapaz. Faz que nem o teu irmão. Sem estudo, o cara não é nada.”

“Depois eu penso nisso.”

“Tô falando sério, porra. Queres passar o resto da vida trabalhando pros outros?”

“Vou fazer supletivo ano que vem pra terminar a sétima e a oitava. Depois faço mais outro pra terminar o ensino médio.”

“E depois?”

“Não sei,” peguei um cigarro no porta-luvas “eu tô de boa, na real. Não preciso de muito, não. Já tenho tudo.”

“Tudo o quê?”

“Meu relógio do exército,” contei nos dedos “meu Super Nintendo, o skate, meus pornôs, meu irmão, o violão e o Tobias. O resto tá de boas. Esse é o plano.”

“Conversar com guri pequeno é uma merda mesmo.”

Eu queria irritar, por isso falei aquilo. Mas eu não tinha mesmo nenhum plano de futuro melhor, construir algo, conquistas e todas essas coisas.

“Meu pai nem fala direito comigo.”

“Ele fala comigo e eu falo contigo, então escuta. Eu sei que na tua idade a gente fica nessa de não ouvir ninguém. Eu já fui assim, teu pai também, e pode crê que com o tempo tudo fica mais pesado. Teu pai não fala direito contigo porque ele tá sempre trabalhando…”

“Ele podia escolher trabalhar menos. Então…”

“Escolher? Porra. Escolher? Maluco, teu pai não escolheu, ele foi na necessidade por vocês. Tu acha que ele tá feliz por não ter tempo? Começa a dar mais valor. Não sabes a falta que o teu pai vai fazer quando morrer.”

“Eu sei da minha mãe.”

Ouvi ele respirar fundo. Tragou o cigarro até o filtro e depois jogou num copo perto da marcha. Passamos pelo viaduto e entramos na parte de dentro do bairro.

“Briguei com o meu pai antes dele ir pro trabalho.” Disse Buba “Briga tola de adolescente matuto. Passou o dia todo marretando pedra. Quando tava voltando de bicicleta pra casa, o coração parou e ele caiu. Ninguém ajudou, porque achavam que tava bêbado. Meu pai era evangélico, só bebia água e café.”

“E por que esses pau no cu acharam que ele tava bêbado?”

Balançou a cabeça como se tivesse perdido um pênalti.

“Samuca, olha pra minha cara. Olha bem pra minha cara. Que cor ela tem?”

Estacionou a picape atrás do mercado. Fechou a porta com força e pegou o garrafão.

“Tu sabe por que tem dias que o teu pai chega em casa mais tarde?” perguntou querendo responder.

“Sei. Ele fica tentando conversar com a minha mãe. Ouvi quando ele pediu pro meu irmão ir com ele no centro espírita.”

Entramos no mercado e foi cada um pro seu canto. O lugar tava abafado. Adiantei em pegar uma garrafa de vinho tinto suave e um pacote de salgadinho. Meu irmão colocava preço nos cafés e fui até ele.

“Tens dinheiro suficiente pro que tu precisa?” perguntou.

“Vai faltar pro cigarro.”

Parou a função, abriu a carteira e me deu cinco pila.

“Compra camisinha também. Vou pro intervalo agora. Depois aparece na praça pra gente trocar uma ideia.”

Procurei pelo caixa da Denise. Ela sorria quando entrei na fila. Era como se fosse a extensão de uma alegria anterior.

“Oi, cunhadinho.”

Fingi mostrar a identidade e ela fingiu que conferia. Sempre consigo comprar o cigarro de boa em qualquer lugar, mas chega na bebida, o pessoal embaça. Peguei pilhas no estande, olhei pros lados e peguei também duas camisinhas e coloquei na esteira do caixa. Denise conseguiu fazer desconto de quinze centavos sem eu pedir. Minha mãe era craque nisso, eu sempre passava vergonha quando tava com ela. Chorava por desconto em qualquer lojinha, pedia brinde e coisas do tipo.

Meu irmão circulava os classificados sentado no banco da praça em frente ao mercado, mas fechou o jornal quando sentei.

“Conseguisse comprar tudo?”

“Sim, até sobrou. Queres o troco?”

Um vento forte balançou as folhas das árvores.

“Não precisa. Como é que tá lá na hípica?”

“Tá massa. Tô aprendendo bastante coisa.”

“O Buba falou que tás indo ver uma guria. É a do 145?”

“Isso. Vai ser só soco na vulva.”

“Para com essa merda.”

“Tô ligado. E o show de amanhã?”

Não respondeu. Só jogou a cabeça pra trás, como da outra vez lá no carro. Olhou pro morro.

“As coisas não estão bem.”

“Que foi que aconteceu?” perguntei.

Vi o ônibus descendo o morro. Vou ter quase três minutos até pegar ele.

“O Buba veio falar comigo agora há pouco. Vais largar a escola?”

“Fofoqueiro pra caralho. Eu tava pensando em fazer um supletivo. Vai dar na mesma e ainda saio um ano mais cedo que o resto dos otários. Mas eu vou indo nessa. O latão já vai passar.”

Olhou de novo pro morro.

“Tu não chorou quando a nossa mãe morreu.”

“Quê?”

“Não deixa de usar camisinha. Tá todo mundo ficando doente, tá todo mundo embuchando.”

“Tá. Pode deixar.”

“Eu disse que tu não chorou quando a nossa mãe morreu.”

Cachorros corriam atrás de um Fusca.

“Mas por que tu tá falando isso agora? Já faz tempo, pô.”

“Dois anos… e até hoje eu não te vi chorar.”

“Acho que cada um age de um jeito, né?”

O ônibus terminou de descer o morro. Levantei.

“Sabes por que a mãe não quis colocar porta no teu quarto?”

Vi entrar na rua da praça.

“Irmão, eu preciso ir, é sério.”

“Sabes?”

“A gente se fala mais tarde, pode ser?”

Ele não respondeu. Corri, atravessei e peguei o ônibus em cima do laço. Eu queria mesmo saber sobre o lance da porta, mas não podia perder o latão.

Ninguém entende de verdade o que sinto. Ninguém sabe das coisas que passei. Jamais pude falar, com medo de não ser compreendido.

Logo depois de ver minha mãe morta, voltei pra casa e terminei de lavar a louça que ela deixou. Eu nunca tinha lavado uma porra duma louça na vida. Em nenhum momento ela permitiu que alguém fizesse o trabalho dela. Fechei a torneira e a água desceu toda pelo ralo. Era como se algo dentro de mim fosse embora e ficasse um vazio. Só eu conheço e sinto a implosão. Desde que apareceu, nunca mais se foi. Nunca mais. Eu me bloqueio pra essa tristeza profunda não me pegar, mas não sou forte pra isso, é quando caio na real que matei minha mãe. Vem e vai rápido e me quebra por um dia ou dois.

Garoava no centro da cidade. Entrei na rua da Aninha e ouvi uma música de fundo, um som instrumental bem calmo. Continuei o caminho e percebi ser do centro espírita que o meu pai frequenta. Parei na frente da porta, estiquei o pescoção e tentei procurar pelo meu velho. Não tava no meio da cabeçada… ou pelo menos não vi.

Cheguei no edifício era sete e vinte e dois. Cumprimentei o porteiro e falei aonde eu tava indo. Pediu pra esperar e interfonou pra ela, ouviu, acenou pra mim e entrei no elevador.

Tava uma escuridão do caralho quando cheguei no oitavo andar. Coloquei os pés pra fora e as luzes acenderam. Encontrei o número do apartamento, mas não apertei a campainha. Não tava conseguindo respirar direito.

Por que meu irmão veio com o papo de eu não ter chorado? O bicho não vive comigo o dia todo pra dizer uma parada dessas.

A filha da puta tava vindo, queria me derrubar aos poucos. Surge na pior hora. É sempre quando eu tô triste. Essa maldita tristeza me faz querer dormir e nunca mais acordar.

Apertei a campainha. Ouvi os passos de salto alto. A porta abriu e o mundo fez coro. Usava uma saia amarela bem curta e uma blusa dessas de carnaval. Falou o meu nome, abriu um sorriso e pulou nos meus braços feito um bicho-preguiça. Não tenho muito jeito pra essas coisas, cê sabe, mas aceitei a convenção.

“Entra.” disse ela “Nossa, fiquei com medo de tu chegar atrasado.”

Parecia mesmo a guria da Malhação.

“Comprei uns cigarros e um vinho.”

“Ah, que legal.”

Sentei no sofá da sala. Rolava um sertanejo no micro system, uma música sobre o coração parar sem ter razão. Foi sentar do outro lado, ficando um acento vago entre nós. Retirei o poema do bolso e entreguei. Que viagem, era pra ter trocado uma ideia primeiro.

“Nossa, tás com frio?” perguntou “Tás tremendo todo.”

“Tô? Nem percebi.”

É de nervoso, minha filha.

Desdobrou o papel e foi ler o poema. Fez uma cara de quem não tava entendendo muito bem as palavras. Depois de um tempo largou na mesa de vidro ao lado e sorriu.

“Nossa, bem bonito.”

Não fode. Bonito é a cabeça do meu pau. Nem deu tempo de ler tudo, sua mentirosa do caralho. Já não gostei.

“Trouxe isso aqui também.”

Retirei o livro da sacola e ela inclinou pra pegar. Foi quando vi a calcinha branca. Deu uma olhada rápida na capa e jogou também na mesa. Tirei o vinho da sacola e coloquei no meu colo.

“Vamos esperar mais um pouco,” disse ela “depois a gente bebe.”

“Claro. Sem problema.”

Ficou muda por um tempo mexendo nas mãos. Pensei em dizer algo pra quebrar o gelo… e ao abrir a boca, a campainha tocou. Deu um pulo, toda animadinha pra abrir a porta. Achei estranho o porteiro não interfonar nem nada, mas o bagulho espinafrou de vez quando ouvi uma voz de macho.

E essa é a história do garoto que saiu de casa pra perder o cabaço e virou oferenda de ritual.

Voltou acompanhada de um cara um pouco mais velho. Os dois aproximaram e me apresentou o vagabundo. Tinha nome de gerente de supermercado: Júlio, Jucélio, Jucimar… era alguma porra assim. O maluco sentou num canto mais distante do sofá. Ela pegou na minha mão e colou a coxa quase no meu colo. Me senti grande, mas fiquei naquelas. O goiabão esticou o pescoço pra ver o nome do livro na mesa e fez um sorrisinho sem mostrar a canjica.

“Legal. É tu que tá lendo?” perguntou pra ela.

“Sim. Ele me deu de presente, né?”

“Isso.”

“Pooorra. A Zíbia Gasparetto é foda, né, cara? Gosto muito.” disse o Jucélio “É a nossa Agatha Christie brasileira.”

“Ele fez um poema pra mim. Olha.” Entregou pro vagabundo.

O gerente tentou prender o riso antes de pegar a folha.

“Tu é poeta? Posso ler?”

“Claro.”

Seu merda.

Ele queria me humilhar. Começou com os versos em voz baixa, mas aí parou de repente e largou o poema no chão.

“Eu amo essa música.”

Era um sucesso sertanejo, algo sobre o amor ser um mar de rosas e lágrima que cai. Não vinha da rádio, era CD mesmo. Essa filha da puta deixou foi tudo programado.

Sabe quando tu janta de boa e sente falta do tempero? Pois é, eu era o colorau dessa porra toda. Não se vestiu pra mim, não preparou a música pra mim, não quis nem saber do meu poema. Era tudo pro vagabundo do gerente de mercado. Os dois levantaram e começaram a dançar juntinhos, aí ela parou na minha direção.

“Consegue um cigarro?” pediu pra mim.

Olhei bem pra fuça dela, não tinha cara de panaca e nem de passarinho, ela tinha cara era de merda. Puxou a garrafa da minha mão e foram pra cozinha. Então era isso, eu tava ali só pra colocar ciúme. Talvez até quisesse ficar comigo lá no início, quando a gente se falava pelo telefone, mas aí os dois acabaram se entendendo nesse meio tempo e a pistoleira resolveu me usar de lenha pra acender o fogo da paixão.

Que pessoas são essas que tem prazer em desgraçar a vida dos outros? Esse tipo precisa nascer morto pro bem do mundo. Na moral. A existência deles é um erro da natureza. Quanta gente boa fica mal da cabeça só pra esses vermes rirem um pouco? São seres rastejantes causando estrago na terra. Eu conheço o tipo, faz de tudo pra te conquistar, até tu cair na rede, depois te deixa pra ficar com o maioral e tu vai ser só o amigo querido. Aí o maioral engravida a vagabunda, eles se juntam num barraco de merda, mas ela tá feliz, porque vai constituir família. O maioral se fudeu e sabe disso, fica nervoso, vem um xingamento. Tudo bem, deve ser difícil pra ele ter de passar por tudo isso. A guria rateia e leva o primeiro tapa, logo depois vem o segundo e daqui a pouco ela vai ter medo dela mesma em vacilar e o bambu roncar nas costas. Mas a piranha fica onde tá, porque sabe que foi Deus quem colocou ela no caminho pra fazer dele um homem melhor. E com o tempo, a guria descobre que o maioral é só mais um fudido fazendo graça. É tarde. Ela vai aparecer com a teta cheia de leite pro amigo querido, fala dos velhos tempos, tenta usar do sentimental pra escorar e passar o resto da vida no lodo da existência medíocre. Mas o amigão aqui já sacou a parada e é agora que eu entro.

Sou o cara que desenha o paraíso nos panfletos de Jeová.

A polícia vai aparecer e vão ter a cara de pau de me prender. O repórter retardado do caralho vai perguntar o motivo de eu ter feito o que fiz e eu só respondo que a vida é como é porque as coisas são como são.

Aproveitei a ida deles pra cozinha, acendi o isqueiro e encostei no braço do sofá. O fogo começou pequeno e foi crescendo. Depois fui pras cortinas, aqui a chama fez miséria. Lá da cozinha, Jucélio pergunta pelo cheiro de queimado. Eu caminho rápido, ergo a mesa de vidro e espero o vagabundo aparecer. O maluco mal entra na sala quando espatifo na cara dele. O filho da puta deu um berro e caiu com as mãos nos olhos. Ela apressa pra ver a porra toda. Eu pego um pedaço grande de vidro, espero a filha da puta aparecer e enterro no pescoço dela. Tenta cobrir pra impedir o sangue de vazar… é tarde, começa a tropeçar feito bêbada e cai no chão. Não me preocupo mais com ela, a natureza cuida. Arranco o pé da mesa de vidro e começo a bater com força nos braços do Jucélio. Ele grita que nem suíno, e eu não paro de bater. Tenta se defender, mas os ossos vão se quebrando. A fumaça começa a tomar conta, o fogo só aumenta. Procuro pelo meu poema e encontro jogado no chão perto da estante. Amasso em bolinha. Jucélio levanta com o bracinho de macaco mole, os olhos dele sangram. Parece as estátuas de santas da televisão. Eu dou uma banda, o vagabundo cai de cabeça no piso e apaga num estrondo. Cabeçudo do caralho. Abro a boca de merda dele e enfio o meu poema até trancar na goela. O bicho acorda já se sufocando. Fecho a boca e o nariz dele com as minhas duas mãos. Agora vai respirar pelo buraco do cu, seu filho da puta. Ele se contorce, tenta sair, mas com os braços quebrados o vagabundo parece uma tartaruguinha de casco virado pro chão. A boca faz uns movimentos como se peidasse ar e aos poucos diminui o ritmo, perde força e vai pro vinagre. A fumaça me sufoca, eu olho ao redor e a porra toda do apartamento queima. Minha vista arde. Então vamos lá. Eu corro pela sala, passo por uma cortina em chamas e olho pra trás. A vagabunda queima. A vagabunda quei…

 

Prosa ruim. Nota: 0,0. Não houve procedimento da correção ao constatar discurso de ódio. Refaça seu texto.

P.S. Esqueça o Proerd. Procure o CVV. Ligue 188.

 

“Hei.” Ela estala os dedos na minha frente “Consegue um cigarro?”

Peguei um do maço e tentei acender pra ela, mas tirou da minha mão. Riscou, jogou o isqueiro no sofá e foi de mãos dadas com o Jucélio pra cozinha. Levantei pra ir embora. Coloquei a garrafa de vinho na sacola e deixei o poema no chão, não era meu. Nunca foi. O livro da Zíbia também, eu não ia ler e não queria levar pra casa. Seria só mais uma porcaria pro meu pai afundar a cara.

Coloquei a mão no bolso da calça pra conferir as coisas e senti a camisinha. Era pra ser uma noite foda. Tô com quase dezesseis anos e ainda não comi uma buceta, não consegui uma namorada.

Eu ia pedir pra usar o banheiro, mas vi três portas ao redor da sala, uma tava mais isolada. Deve ser essa. Que se foda, vou entrar assim mesmo. O lugar cheirava a banho recente e o espelho tava embaçado. Girei a chave na porta e tranquei. Tinha umas roupas no cesto do lado da pia. Nem precisei revirar pra encontrar uma calcinha azul na cara do gol. Peguei e encostei no nariz. Que merda, tinha cheiro de flor. Mas tudo certo. Coloquei o pau pra fora e cobri a cabeça com a calcinha. O cheiro de cu e rosas me deixou de pau duro. Abri a embalagem do preservativo. Mesmo sendo um punheteiro maldito, era a primeira vez que eu colocava uma camisinha no meu pau. Toquei rápido. Era uma sensação estranha, não tinha tanta sensibilidade.

Cê sabe, tô condenado a sempre ver minha mãe esparramada pelo asfalto. Tinha um talho na bexiga dela e deixou um forte cheiro de mijo fresco. Gozei e ponto final. Tirei a camisinha, amarrei e coloquei em cima da pia. Peguei a garrafa de vinho na sala. Eles se beijavam na cozinha quando bati a porta.

Desci do ônibus ao chegar no ponto final do bairro. Enquanto esperava o momento certo pra atravessar a rodovia, vi meu irmão entrar na rua com um galão de gasolina e sumir aos poucos na escuridão. Meu corpo tremia de frio e de tristeza, mas lutei contra, porque eu precisava ficar bem, pelo menos até atravessar a estrada.

Meu irmão tava parado próximo da janela do meu quarto e olhava pra casa da Denise… Espera. Tô falando sobre a minha história, então preciso ser verdadeiro. Enquanto voltava de ônibus pra casa, eu tava ouvindo minha fita do Super Parada Globo de Ouro no walkman e veio várias lembranças da minha mãe, coisas que não vou colocar aqui pra mim não ficar mal agora, nesse momento em que escrevo. Eu tenho umas atitudes bem aleatórias. Quem não me conhece direito pode até me chamar de maluco e coisa e tal, não me importo com isso. Fábio Junior cantava Felicidade quando atravessei a rodovia de olhos fechados. Sei que foi uma loucura do caralho pra mim ter que colocar aqui, sei que no fim isso pode ser prosa ruim pra influenciar alguém a fazer o mesmo, mas foi o que aconteceu, então não posso ignorar. Nem minha psicóloga. Ah, e a música também foi aleatória, então nem perde teu tempo tentando fazer alguma análise profunda sobre isso. Se eu demorasse mais um pouquinho pra atravessar, seria Nenhum de Nós cantando Camila, Camila.

Meu irmão tava parado próximo da janela do meu quarto e olhava pra casa da Denise. Percebi que tentou cobrir com a perna pra mim não ver o galão de gasolina no chão.

“Tudo certo?” perguntou.

“De boa.”

“Tô esperando a Denise.”

Me acompanhou com os olhos até eu entrar em casa. Não queria papo com ele e nem com ninguém, só fui direto pro quarto. Acendi um cigarro. Tobias veio lamber meu rosto ao me sentar na cama. Peguei um ena t do Air Supply e tocou Lonely Is The Night. Eu não tava mal por ter sido rejeitado. Foda-se. O meu problema maior é saber que esse parasita escondido dentro de mim sempre sai pra me torturar quando não tô bem. Tomei a garrafa de vinho em quatro goles. A fumaça do cigarro infestou o quarto. Foda-se também meu pai, não vou abrir a janela toda vez que for fumar. Liguei a TV e mudei de canal, tava na hora do Cine Privê, mas na moral, eu nem queria isso. A implosão fica mais forte e eu preciso fugir. Agonizo num labirinto infinito.

Acordei com a mão no pau. Minha boca ficou seca por causa do vinho e a cueca tava babada de porra. Levantei com a implosão ainda latejando e um coração batendo no meu ouvido. O canal ficou fora do ar com as cores formando um arco-íris. Olhei no meu relógio, era quase quatro da manhã. Foi um pesadelo o que me despertou. Eu tava preso numa cela onde as paredes eram feitas de dedos indicadores e a única coisa na minha frente era uma grade cravada na terra até perder na escuridão. Eu gritava por uma pessoa, mas não lembro quem. Não era minha mãe. Ao menos isso.

Desliguei a TV e ouvi o motor do carro do meu irmão ser ligado. Abri a janela pra conferir, podia ser algum ladrão filho da puta. O Monza deu a ré e saiu da garagem, ficou parado por um tempo e aproximou devagar, até parar na frente da minha janela. Tava escuro e não acendeu a luz no teto do carro, mas dava pra ver que era ele, pois o quarto iluminava uma parte lá fora. Me olhou como se quisesse dizer algo. Eu, pelo menos, não tinha nada pra dizer, então só acenei, fechei a janela e capotei de novo.


 

IV

 

Acordei com o Tobias resmungando. Ele faz isso toda vez que precisa mijar ou cagar e não aguenta mais ficar esperando. Caralho, eu tava podre. Era como se minha cabeça tivesse passado a noite toda fritando na chapa. Isso que foi só uma garrafa de vinho.

Abri a porta de casa e Tobias correu pra rua. Ouvi a dona Angélica me chamar, tava toda encolhida de frio com o rosto pálido e a boca um pouco aberta. Acenou pra mim esperar e deixou a varanda da casa trazendo a Velha Coroca pelas mãos.

“Samuel, a minha filha não dormiu em casa hoje. Ela passou a noite aqui?”

“Não sei. Acordei agora. Ontem eu só cheguei e já fui pro quarto.”

“O mercado ligou e disse que ela não foi trabalhar.”

Olhei no relógio. Era quase duas horas. Não gosto de acordar tão tarde assim, fico ruim o resto do dia.

“Onde tá o teu irmão?”

“Acho que hoje é o domingo de folga dele. Eles devem tá dormindo. Vou olhar aqui.”

Virei as costas e deixei elas ali enquanto eu caminhava pro quarto do meu irmão. Ouvi a dona falar algo, mas não entendi na hora. Bati na porta duas vezes e ninguém respondeu, então resolvi puxar a maçaneta e abrir. Tava só a cama e o guarda-roupa. Sumiu a TV, o videocassete, o ventilador, o aparelho de som e as caixas. A guitarra e o amplificador também sumiram. A dona entrou em casa e se aproximou com a Velha Coroca. Olhei pra elas e olhei de novo pro quarto.

“Eu disse que o carro do teu irmão não tá na garagem.”

Aí lembrei dele sair com o Monza no meio da madrugada, mas não conseguia buscar na memória os detalhes. Entrei no quarto dele e abri o guarda-roupa. Só papelada. Nada de fitas ou discos, e ele tinha muitos. Olhei nas gavetas, as camisas e as calças também tinham sumido.

“O quarto do teu irmão é assim?”

“Não.”

“Ai, meu Deus.” Colocou a mão no coração “Eles fugiram.”

“A senhora viu o quarto da Denise?”

“Não. Ela deixa trancado.”

“O filho da senhora tá em casa?”

“Tá trabalhando.”

“Olha só, eu acordei agora, só vou aqui no banheiro e já volto pra gente ver isso, tá bom?”

“Tudo bem. Eu espero.”

Meu mijo tava alaranjado. Lavei o rosto e fui pro quarto. Peguei a roupa do Cobrador e o livro de poemas e devolvi pra dona Angélica.

“Vou ligar pro meu pai. Acho que não tenho muito que fazer.”

“Tá bom. Tu falou com o teu irmão ontem?”

“Falei, mas… não foi quase nada. A senhora consegue abrir o quarto dela?”

“Não tenho a chave.”

“Tá. Eu vou ligar então pra ele, pra vê o que pode fazer.”

“Liga lá de casa.”

Comecei a discar os números da agenda, mas nem cheguei a completar, fui impedido por um mata-leão que levei na crocodilagem. Meu Deus do céu, gritou a dona Angélica. E logo os braços se soltaram do meu pescoço. Me virei pra entender a parada. A Velha Coroca tentava me pegar feito cachorro na coleira e a dona segurava ela. Pediu desculpas, disse que a mãe nunca foi agressiva com ninguém e tudo mais. A Velha Coroca se acalmou em pouco tempo e foi levada pro quarto. Esperei na linha a atendente do hospital chamar meu pai. Não tinha necessidade desse apavoro todo, talvez fosse só uma questão de esperar mesmo. Mas era pela dona Angélica, a coitada esfregava as mãos nas pernas sentada na cadeira da cozinha.

Ouvi o telefone ser pego e a voz do meu pai falando com alguém. Depois se voltou pra mim.

“Desembucha. Tenho que voltar pra portaria.”

“O meu irmão não tá em casa.”

“E?”

“Ele sumiu com as coisas do quarto.”

“Vendeu?”

“Não sei. A Denise também desapareceu.”

“Mas agora não posso fazer nada. Espera, que a hora que eu chegar, eu converso com ele.”

Seu animal do caralho. Tu tá surdo, porra? Eles sumiram. Se eu soubesse que meu pai ia virar nesse inútil, eu tinha era fugido de casa quando matei minha mãe. Agora sobrou isso, um pai de merda. Consigo ter mais diálogo com o Mudinho do que com esse bosta. Apertei o gancho e fingi me despedir dele.

“Dona Angélica, o outro vigia faltou hoje e o meu pai tá sozinho. Ele vai ligar pro supervisor pra colocarem alguém no lugar dele pra poder voltar pra casa. Agora é só esperar.”

“Me ajuda a abrir o quarto dela?”

Puxei a maçaneta e empurrei a porta, mesmo sabendo estar trancada. Olhei pelo buraco da fechadura e só consegui ver a cortina branca cobrindo a janela.

“Vou precisar arrombar.”

Peguei distância e levantei o pé, mas a dona pediu pra mim tentar de outro jeito. Outro jeito? Nunca fiz essas coisas. Não entendo nada disso.

Bati na casa do Buba. A janela tava aberta, só que era alta demais pra mim aparecer. Rolava um rap quase no último volume. Bati de novo e gritei, então o som diminuiu, era a música terminando. Aproveitei e bati mais forte. Ele abriu.

“Preciso da tua ajuda.”

“Porra, de novo? Não vou sair de casa hoje não.”

“Não é carona.”

Sentou no sofá, do lado do som. Vi a capa do CD, era uma cruz com um fundo escuro.

“Que é que deu ontem lá com a guria?”

“Comi. Gozei na cara dela e tudo. Mas é outro lance que eu tinha que ver contigo.”

“Ah, perdesse o cabaço então? Qual lance?”

“O meu irmão sumiu e acho que… Abaixa isso, não consigo nem falar direito contigo.”

“Isso daqui é obra-prima, rapaz. Isso daqui…”

E começou a viajar num papo de exclusão e preto isso e preto aquilo. Nem dei trela, já conheço a peça. Queria só fazer logo a minha parte e passar a bomba pra outro. Era tolice esse auê todo.

“Preciso que tu me ajude a abrir a porta do quarto da Denise.”

“E precisa de mim pra isso? É só abrir.”

“Quando eu digo abrir, tô falando em arrombar.”

“E por que tu não faz isso?”

“Porque não sei.”

“E por que tu acha que eu sei?”

“Tu trabalha com ferramenta e essas coisas…”

Levantou num pulo.

“O que tu quer dizer com ‘e essas coisas’, rapaz? Tá achando que eu sou bandidão? Eu trabalho com móveis.”

Buba desparafusou a fechadura e usou a chave de fenda pra puxar pra cima um ferro dentro dela, depois empurrou pra trás. Pronto. Abriu o quarto. Nada fora do normal. Não sabia dizer pra dona Angélica se era bom ou ruim, eu continuava com a ideia disso ser exagero. O negócio era dar mais um tempo… mas sabe, né, mãe é mãe. A dona colocou a mão na testa e foi deslizando até segurar o queixo. Buba aguentou o ombro dela e deu a ideia de irmos pra delegacia.

“Tens uma foto do teu irmão?” perguntou Buba.

“Não. O quarto tá pelado. Só tem uns papéis.”

“Eu tenho aqui.” Disse dona Angélica.

Pegou um álbum de fotos no armário da sala e colocou na bolsa. Depois escreveu um bilhete e deixou na mesa avisando da ida na delegacia. Fomos exprimidos na picape, inclusive a Velha Coroca, que foi no colo da dona Angélica.

O negócio parecia morto. Era bocejo pra tudo quanto era lado e as salas eram bem pequenas. Entramos num corredor, paramos num gabinete maior e sentamos na frente de um pançudo com cara de fumador de charuto. O maluco nos olhava como fosse socar a mesa. Eu só conseguia prestar atenção num outro cara, o vagabundo digitava com pressa no teclado do computador. É escritor, só pode. Mas aí, quando o pessoal parava de falar, logo depois ele também parava de digitar. O pilantra tava era escrevendo o que a gente falava. Não seria mais fácil então gravar a conversa?

“Por que a senhora acha que eles estão desaparecidos?”

“Ela não dormiu em casa e nem foi pro trabalho.”

“Eles tem histórico de entorpecentes?”.

“Não.”

“Tem passagem?”

“Também não.”

“Essa foto é recente?”

“Sim, senhor.”

“E o teu irmão?” perguntou pra mim “Quando foi que tu falou com ele pela última vez?”

“Ontem no final da tarde.”

“Por quanto tempo?”

“Uns cinco minutos.”

“Aonde?”

“Na praça na frente do mercado que ele trabalha. Aquele no começo do Monte Verde.”

“E sobre o que conversaram?”

“Nada de grandioso.”

“E o que seria nada de grandioso?”

Olhei no meu relógio. A essa hora era pra mim tá em casa batendo uma punheta pra Luizinha da banheira. A sem vergonha se esfregando naqueles pagodeiros do caralho.

“Tá com pressa, filho?”

“Não.”

“Então responde, e o que seria nada de grandioso?”

“A gente falou sobre o preço da ração do cachorro.”

“Ficaram cinco minutos falando sobre ração?”

“Não. O resto a gente ficou em silêncio.”

“Não mente pro tio.”

Tomá no teu cu. Tio é o caralho. Não sou guri pequeno. Não fode.

“Posso ir no banheiro?”

“Se tiver acontecendo alguma coisa, pode falar. O tio tá aqui pra ajudar vocês.”

Apontou pro corredor. Era tanta sala no meio do caminho que precisei pedir ajuda prum bananão pra chegar aonde eu queria.

Me tranquei na cabine. Tava uma catinga de merda e fumaça. Botei o pau pra fora e toquei rápido. A Luizinha alcança o pagodeiro, mas a parte de cima do biquíni cai. Tenta arrumar e desiste porque precisa segurar o vagabundo. O pau ainda tá mole e eu vou gozar. Vem, mamãe, vem. Deixa eu ver a tua cabeça estourada no asfalto. Ploft. Afogo mais um filho da puta.

Volto pra sala. O Cobrador tava lá sentado na minha cadeira. O escritor aponta pra poltrona do lado, eu aceno pra dizer que tá tudo bem. Ele insiste e volto a ficar de frente pro pançudo.

“A senhora aqui falou que o carro do teu irmão sumiu e as coisas no quarto dele também. Ele fuma maconha, bebe ou cheira coisa estranha?”

“Não.”

“E o braço dele? Tem furinho no braço dele?”

“Não. Meu irmão não usa droga. É trabalhador e estuda.”

“Tem muito trabalhador e estudante se entupindo, sabia? Que roupa ele vestia quando se viram pela última vez?”

“Não sei. Tava escuro.”

“Tu falou agora há pouco que era fim de tarde. Não tinha luz na praça?”

“A última vez que a gente se viu não foi na praça.”

“Como assim? Tás mentindo pro tio? Que coisa feia.”

“Eu não tô mentindo. O senhor perguntou qual tinha sido a última vez que falei com o meu irmão. Foi na praça. Se o senhor tivesse perguntado quando foi a última vez que vi ele, eu teria dito.”

O pançudo esfregou os dedos na vista. Tava perdendo a paciência.

“E quando foi a última vez que tu viu o teu irmão?”

“Eu tava voltando pra casa e ele tava entrando na rua com um galão de gasolina.”

“Gasolina?”

“Isso. Acho que foram viajar, mas não tenho certeza. Não perguntei. Eu só queria entrar logo em casa porque tava frio. Depois acordei de madrugada e abri a janela.”

“Por que abriu a janela?”

“Porque ouvi o barulho do carro. Podia ser alguém roubando.”

“Tá certo.”

“Aí parou na frente da minha janela.”

“Ele tava sozinho?”

“Não percebi.”

“Tinha coisa no carro?”

“Também não percebi.”

“Facilita pro tio, vai.”

“É que na distância que ele parou, só dava pra ver uma parte de quem tava no volante. E logo depois eu fechei a janela e fui dormir.”

O Cobrador pulou em cima de mim e me segurou pelo colarinho.

“Mentiroso do caralho. Foi por isso que tu pediu roupa pra mim…” o pançudo estalou os dedos e vieram uns caras segurar o Cobrador “Não pegasse roupa com o teu irmão, porque ele já tinha sumido com tudo.”

O pançudo mandou ele ter calma e sentar. O Cobrador apontou o dedo na minha direção e disse que eu tinha envolvimento, que eu sabia de muita coisa e não sei o que lá. Aí, logo depois fez o papel do carinha se acalmando e todo mundo larga ele aos poucos… e quando tudo tá em paz, volta a me agarrar pelo colarinho.

“Cadê a minha irmã, porra?”

E eu sinto o bafo quente de café, suvaco e ódio saindo dele. As mãos apertam com força a minha camisa. Meus olhos tremem. Não há mais piada e nem conversa sobre bucetinha.

Meu pai chegou era quase oito da noite. Tentei explicar o ocorrido, mas o pau no cu foi falar com o Buba, como se precisasse de um selo de garantia pra qualquer coisa que eu dissesse.

Era pro meu irmão aparecer no fim da noite, mas não aconteceu. Talvez fosse levar mais tempo pra ele e a Denise voltar.


 

V

 

Preferi deixar o Tobias dentro de casa até tudo se resolver. Passei a manhã na hípica sem conseguir me concentrar no trabalho porque o cavalo na baia fez um barulho com a pata que lembrou uma música do Men at Work e a lembrança levou ao meu irmão. Ele tinha um show pra fazer e não ia meter o louco de deixar isso de lado. O curso de Direito então, nem se fala. Deu dez pro meio-dia e o seu Ícaro me liberou. Não falei pra ele o que tava acontecendo porque não queria ninguém me enchendo de pergunta e nem com pena de mim ou coisa assim.

Parei no galpão do Buba. Ele e o Mudinho almoçavam na escada.

“E aí. Novidade do teu irmão?”

Só balancei a cabeça. Pra mim ele ia voltar logo, não tinha motivo pra ficar longe. E o bicho não desapareceu sozinho. Podia tá ele e a guria numa aventura. Sei lá. Essas coisas de comercial de cigarro.

“Liguei pro teu pai agora há pouco. Ele telefonou pra faculdade, mas teu irmão não apareceu lá não.”

“E alguma notícia da Denise?”

Mudinho deu uma garfada e cutucou o Buba.

“Nada também… Acho melhor tu voltar pra casa agora.”

“É… já tô indo.”

“Tem que ser agora.”

Buba olhou por cima do meu ombro. Me virei. Era o Cobrador chegando. Caralho. Se eu tentar sair vai ser pior. É sempre pior. O negócio é ficar. Só vai intimar, ameaçar e tudo termina numa boa.

“E aí, Samuca. Desenrola aquela fita lá que tu falou pro delegado.”

“Era só aquilo mesmo.”

“E o que é que tu falou com o teu irmão?”

“Nada. Só parou o carro e eu fechei a janela.”

“E por que é que tu tá nervoso?”

“Não tô nervoso.”

“É? E antes? Que é que tu falou com o teu irmão antes? Não mente pra não ficar ruim pro teu lado. Que é que tu falou com o teu irmão?”

“A gente falou da nossa mãe…”

“E mais o quê?”

“Mais nada.”

Colocou um pé por trás de mim e me deu um soco no peito. O cara foi rápido feito uma víbora. Caí sem ar e quase bati com a cabeça na escada. Foi uma bomba do caralho. Filho da puta. É mal de família pegar os outros na crocodilagem. Buba se meteu na frente pra apartar o bagulho enquanto o Mudinho largou a marmita e me ajudou a levantar.

“Calma aí. O guri tá te dando a letra numa boa.”

“Dando a letra é um caralho. O maluco tá de caô, rapá. Minha velha falou que ele disse pro delegado que tavam conversando de não sei o que de preço de ração.” Se esquivou do Buba e veio pra cima de mim “Aí, acho melhor tu falar a verdade, porque a gente vai voltar a se ver.”

O pau no cu foi embora logo. Fingi limpar a roupa, pra esperar ele pegar distância e eu ir em seguida. Ao menos o Tobias tava dentro de casa, senão ia querer morder o Cobrador e a parada ia ficar feia pra todo mundo.

Entrei no quarto do meu irmão. Abri o guarda-roupa e revirei os poucos papéis. Só boleto de faculdade, nota fiscal, manual de instrução, folheto de tele-entrega de lanche e contracheque. Porra, o bicho não deixou nem uma carta. Nada. Sentei na cama e me abaixei pra pegar o cartaz do show. Tive uma ideia cretina e descartei na hora. Dobrei o cartaz e coloquei no bolso. Pra onde esse porra foi? O que ele fez? E a Denise? Comecei a me sentir meio vazio. A implosão queria entrar, é sempre assim. Se tenho vontade do dia acabar logo, não tem erro, é a filha da puta vindo. De vez em quando eu durmo e passa por um tempo, mas só consigo dormir quando tô caindo de sono. E não é o caso.

Fui pro meu quarto sentindo como se meus pés tivessem amarrados nessas algemas com bolas, tipo as dos filmes de comédia. Peguei o palheiro no compartimento do mini system e deitei no chão com o Tobias. Não liguei o rádio, nem o Super Nintendo e muito menos a TV. Eu só queria ficar no silêncio e sentir o chão frio nas minhas costas enquanto enchia o quarto de fumaça. Lá pelas tantas da tarde, alguém bateu na porta. Podia ser o Cobrador, a polícia, o pessoal de Jeová, um vereador ou alguém trazendo a boa nova sobre o meu irmão. Eu grudei no chão e não podia sair.

O Tobias me entende. Ele não levanta e não late, mesmo com a insistência de quem bate na porta. Fica apenas ali do meu lado. É a hora do vazio, do sentimento oco, da tristeza agonizante fervida no nada e esse nada não consegue me tirar nenhuma lágrima.

 

Nota: acho que escrevo bem quando falo sobre a implosão, só preciso tomar cuidado pra psicóloga não me mandar pro psiquiatra e o psiquiatra me mandar pros remédios. Todos os conhecidos que se mataram tomavam remédio pra não se matar. A vida é como é porque as coisas são como são.

 

Meu pai chegou no começo da noite, empurrou a cortina pro lado e entrou no meu quarto. Eu tava jogando Earthworm Jim.

“Que cheiro é esse?”

“É de palheiro.”

Continuei com o meu jogo, não olhei nem dei a menor atenção, mas a sobrancelha dele se arcou toda, sei porque é a única expressão de emoção que esse porra consegue ter quando algo não vai bem.

“Eu não quero ver tu fumando no quarto.”

“Tá bom.”

“O teu irmão tá sumido e eu preciso que tu me ajude. Consegues cooperar até ele voltar?”

“Claro.”

“Obrigado.”

Levou mais um tempo antes de deixar o quarto.

O Cobrador bateu na porta de casa. Eu sabia ser ele, pois foi uma batida forte e só esse animal de teta pra fazer isso. Aumentei o volume da TV e deixei discutirem. Queria mesmo era que se embolassem na porrada e um arrancasse o coração do outro na mordida. O Cobrador tava exaltado e falava rápido, não dava pra entender porra nenhuma. Meu pai arriscava interromper, mas a voz do outro ficava mais alta e ele se calava. No fim das contas, a lenga-lenga não durou mais que uma música.


 

VI

 

Na manhã seguinte, quando abri a porta de casa pra ir na hípica, tava o cuzão do Cobrador tomando café sentado na varanda da casa dele. Esse laranjão acha que é o cara do Halloween, só pode. Tragou e bateu o cigarro. Tobias rosnou. Mandei meu amigo ficar de boa.

“Cadê a minha irmã, seu filho da puta?”

O vagabundo começou a vim na minha direção.

Se eu tivesse com alguma parada pra dar jeito nele, eu daria. Mas não era o caso. Então chamei o Tobias, fechei a porta rapidão e corremos pro fim da rua. O Cobrador até arriscou ir atrás. Coitado. Jamais me alcançaria.

Chegamos na rodovia e carreguei o Tobias no colo porque o excesso de carros podia deixar ele nervoso, ainda mais que nunca foi tão longe.

O porra do porteiro da hípica embaçou quando me viu com o Tobias. Pediu pra mim esperar enquanto ele ligava pro seu Ícaro. Falou, falou, fez uma graça no telefone e veio dizer das normas e coisa e tal, pra depois liberar. Esses fudidos se acham melhor só porque ganham um trocado a mais. Nem falar direito o merda sabe. Sotaque feio do caralho. Todo errado. Não fode.

No fim das contas, seu Ícaro ficou brincando com o Tobias na pista de treino e até levou ele pra dentro do alojamento. Disse que lembrava o Jack, um vira-lata que teve logo depois de sair da aeronáutica.

Eu e a moça demos um banho no Piquet. Ela não parecia muito bem. De fato, quando me passou o balde veio falar do cansaço, que a gente só vive pra trabalhar, que eu tenho de escolher bem antes de pensar em casar… Esses conselhos de quem se fudeu. Nessa hora avistei a dona Angélica colando cartaz no poste do outro lado da rodovia. Ela carregava a Velha Coroca pelo braço como fosse um pai saindo com o filho no meio da multidão.

Eu não devia ter fechado a janela naquele dia, devia ter conversado com ele. Qualquer um faria. Teria dito pra onde tava indo e eu saberia o destino.

No fim do turno, disparei com o Tobias pro outro lado da rodovia. A velha colou um xerox da foto da Denise e do meu irmão juntos. Informação de desaparecidos, número pra contato e “Deus te abençoe” no fim da folha. Eu quis correr, abraçar a dona Angélica e chorar com ela. Mas meu irmão voltaria logo. Esse negócio de desaparecer pra sempre é coisa de velho com Alzheimer e criança com cara de novela.

Coloquei o Tobias no colo e me apressei pra casa. Não queria e nem podia dar de cara com o Cobrador.

Abri a geladeira. Sem a Denise aqui em casa, a comida ficou repetitiva. Meu pai tem a mania de só fazer arroz com alguma coisa e essa coisa costuma ficar por dois ou três dias até ficar cadavérica. Só tinha arroz congelado e frango ensopado. Reclamar da comida é pecado, eu sei, porque tem um monte de gente na miséria e tal, mas ninguém vai encher o bucho se eu parar de reclamar. Então que se foda.

Comi farinha com açúcar e dei o arroz com frango pro Tobias.

Fui pro quarto e vigiei pelo canto da janela. A Velha Coroca ficou uma cara na varanda olhando na direção do mangue. O Cobrador apareceu e colocou ela pra dentro. Depois o vagabundo foi pra rua, encarou a porta da minha casa e seguiu o rumo pra rodovia.

Vou aproveitar pra passar na locadora. Outro dia tentei pegar o jogo do Stallone alpinista, mas algum catinguento já tinha se adiantado. Deixei o Tobias em casa, o negócio agora é trancar ele até resolver essa parada do meu irmão. Peguei o skate e passei no Buba. Eu tinha um real e consegui mais um com o Mudinho. Entrei na rodovia e arrisquei um kickflip, quase embucetei de boca no areião do acostamento. Passei em frente ao camping de medicina e mais adiante dava pra ver os operários construindo as casas populares no morro. Peguei a trilha do posto de saúde, atravessei a estrada e entrei na locadora. Não tinha o Stallone, mas consegui pegar o True Lies. Dessa vez eu fecho esse filho da puta.

Fiquei panguando na praça do Monte Verde, no mesmo banco que eu e o meu irmão conversamos pela última vez. Hoje meu pai chega mais tarde. É dia de ir no centro espírita depois do trampo. Não tô a fim de voltar pra casa. Tipo, tô seco pra chegar, tocar uma punhetinha e passar a noite metendo uns tiro com um Whitesnake na vitrola e tal. Mas agora eu quero ficar sentadinho numa boa fumando meu palheiro. Não tô triste, não. Podia ir na pista olhar alguma guria, é só atravessar a rua. Mas não conheço a cacalhada e sozinho é foda porque nunca tenho nada pra dizer.

Do banco olhei o pessoal que entrava e saía do mercado. Era pro meu irmão e a Denise estarem lá. Não. Não dá pra ficar aqui, vai ser pior. Empurrei o skate, peguei impulso e segui o caminho de volta pra casa. Cheguei na rua bem na maciota. A parada agora é ficar esperto com o Cobrador. Fui até o galpão do Buba e subi numa pilha de madeira pra ver mais adiante. A casa da dona Angélica tava com uma janela aberta, pelo menos era o que dava pra ver do galpão. Buba parou o lixação.

“Pode ir. Não dá nada.”

“Quem garante, meu chapa?”

“Vais querer carona pra casa?”

“Tô de boa. Vem aqui tirar onda com o meu ovo esquerdo.”

Me inclinei na ponta do pé, não conseguia ver ninguém na casa. Levei um tapa na perna, desequilibrei e quase caí com o susto. Meu coração acelerou, a adrenalina foi pro caralho e cheguei a jogar o pé pra trás, pronto pra dar uma bicuda na fuça do Cobrador. Era o Mudinho. Acenou pra mim descer, ia me acompanhar em casa.

Mostrei pra ele a fita alugada. Queria ter algum assunto pra não deixar claro o medo de encontrar aquele merda. Tudo certo. A Velha Coroca vigiava pela janela. Me despedi do Mudinho e entrei.

Comi arroz com frango ensopado, ouvindo Here I Go Again. Liguei o Super Nintendo e fiquei uma cara fudida pra matar o gordinho da shotgun. Já tava xingando pra caralho.

Meu pai chegou quando eu curtia os créditos. Como é que eu não fecho essa porra. Não deu nem tempo do coitado respirar e o Cobrador foi bater na porta. Eu tava ficando de saco cheio dessa merda e não dava pra fugir toda vez que fosse sair ou entrar. Eu e o meu pai em cima dele dava conta tranquilo. Um socava embaixo e o outro dava só bomba na cara, o maluco não ia entender era nada. Na moral mesmo, até com o meu irmão eu tava indignado. O bicho podia muito bem ligar pra alguém e avisar onde tava. Cuzão pra caralho. Não fode.

Dei stop na fita pra ouvir o papinho do pilantra. O Cobrador começou a falar de dinheiro. Porra, a gente também tá na merda, seu otário. Eu e Tobias saímos do quarto e paramos do lado do meu pai. O verme tava com um pé dentro e o resto do corpo fora de casa.

“Tás anotando? Tem também os xerox e a cola que a minha mãe tá usando todo dia. Todo dia.”

“Tá certo.”

“Já anotou o Rivotril?”

“Ainda não. Peraí.”

“Que porra é essa?” perguntei.

“Volta pro teu quarto, Samuel.”

“Não se mete que a conversa aqui é comigo e o teu pai.”

“Não se mete é o caralho, seu pau no cu.”

“O que tu falou, maluco?” aproximou e o Tobias latiu pra ele.

“Volta pro teu quarto, Samuel.”

“Tu és é um pau no cu do caralho, rapá. Nem tás se importando pra porra nenhuma. Tua mãe é que tá fazendo a correria.”

“E é disso que eu tô cobrando, seu animal.”

“Samuel, já disse pra ti voltar pro teu quarto.”

“Mas esse bicho tá enchendo o saco todo dia.”

“Deixa que eu resolvo. Agora volta pro teu quarto.”

Eu queria enterrar uma faca no peito daquele verme do caralho e mostrar pro meu pai a melhor forma de acabar com um problema. Era pra gente amaciar o vagabundo, mas o velho ficou feito uma putinha aceitando as merdas daquele lixo.

Fui pro quarto. Tobias veio junto. Sentei na cama e fiquei encarando o skate. As mãos tremiam, eu não conseguia respirar direito. Algo me sufocava. Se o vacilão vier me ameaçar amanhã, vou abrir uma buceta na cabeça dele com a ponta do shape.

As vozes foram sumindo e meu pai entrou no meu quarto.

“Não quero mais problema. Tá entendendo?”

Não respondi nem olhei pra ele. Vem querer falar merda. Não fode.

“O que tá acontecendo, Samuel?”

Levantei da cama.

“O que tá acontecendo? Porra, o meu irmão sumiu e eu tô tentando ficar de boa, porque ninguém tem ideia de onde ele tá. Tem esse porra que não vai parar de encher o nosso saco até a porcaria da irmã dele voltar. A gente vive numa casa toda fudida. Nunca tem comida, e se tem, é…”

“E por que tu não me ajuda?”

“Te ajudar no quê? Quando eu liguei pra falar do sumiço, tu cagou e andou pra parada. Tu nunca tá em casa. É só trabalho e aquela porcaria de centro…”

“Eu tô trabalhando justamente pra gente sair daqui. Quando tu for maior e tiver a tua família, vais ver a dificuldade que é.”

“Eu sei que não é fácil, eu sei disso… e ficou pior…”

“Não sei se vou dar conta de tudo sozinho. Eu realmente preciso da tua colaboração.”

“Eu tô colaborando. Peguei um trampo também…”

Ouvimos o barulho de vidro se estilhaçando. Tobias latiu e correu pra cozinha todo atiçado. Meu pai acenou pra mim ficar parado e esperamos por um tempo até não ouvirmos mais nada. Puxou a cortina pra sair do quarto. Dali já dava pra ver os cacos espalhados pelo chão e embaixo da geladeira. Fui pra cozinha. Tinha uma pedra do tamanho do meu punho caída perto do fogão. O vidro estilhaçado era da janela. Fez um buraco pouco maior que o de uma bola de tênis. A pedra veio de fora. Foi o verme do Cobrador quem fez isso. É um bicho bem merda mesmo.

“Não quero que tu faça nada.” pediu o meu pai.

“E se eles nunca mais voltarem?”

“Não sei.”

Varri os cacos e meu pai pegou com a pá.

“A gente não vai mais ter paz aqui.” disse eu.

“Aguenta as pontas mais um pouco. Eles vão voltar. É só ter fé.”

Isso vai acabar em morte. É sempre assim. O merda vai bater todos os dias e nos cobrar como se a gente fizesse parte disso tudo, como se fôssemos cúmplices. E o meu pai pode suportar por um bom tempo, porque no fim, vai ter a esperança de trabalhar cada vez mais pra levantar uma grana e sairmos daqui.

Mas eu não sou meu pai.


 

VII

 

No final da tarde do dia seguinte, passei no galpão do Buba pra descolar um cigarro. Fumamos. Ele disse que a dona Angélica e o Cobrador iam aparecer no Programa do Cesinha, aquele depois do almoço. Baixou a esteira e pediu ajuda pra colocar uma cômoda na picape. Até fiz minha parte, mas o Mudinho foi quem praticamente ergueu o móvel sozinho. Com isso consegui pelo menos mais um cigarro.

Pouco antes do meu pai chegar, abri a porta pro Tobias dar uma mijada na rua e o Cobrador e a Velha Coroca me olharam da janela. Pediu pra esperar. Entrei em casa, peguei a faca de tirar escama e escondi entre a calça e a jaqueta. Quando voltei pra rua, o vagabundo tava quase na frente da minha porta. Disse que não queria dinheiro nenhum do meu pai, pois o negócio era todo mundo se ajudar mesmo, “a raiva já passou e agora é só preocupação e esperança”.

“Tá bom. Era só isso?” perguntei.

Estendeu a mão de merda dele e aceitei a convenção. Depois virei as costas, chamei o Tobias e entramos. Vagabundo tava era pagando sapo, mas contei a história pro meu pai quando chegou em casa. “Estranho. É melhor ficar esperto com isso.”

Na quinta, ao voltar da hípica, toquei uma punhetinha rápida no banheiro e fui pro quarto ligar a TV. O Programa do Cesinha deixou o caso pro último bloco. O Cobrador e a dona Angélica pareciam mais gordos na televisão. Mostraram fotos do casal desaparecido e pediram pro pessoal parar com os trotes. O bicho chorou, falou que a família tava sofrendo e o caralho a quatro. Dona Angélica mostrou os medicamentos dela e os da Velha Coroca. Era tudo verdade, mas na moral, rolou um draminha aí nessa parada.

Sexta de tarde foi o Mudinho me chamar pra vermos o jogo do Brasil contra a Dinamarca. Quando cheguei tava o Buba e o Cobrador xingando pra caralho a zaga, depois da Dinamarca abrir o placar, logo no início do primeiro tempo. Os caras compraram uma cerveja amarga pra caralho. Eu fico bêbado rápido, por isso tomei em pequenos goles. Terminei a primeira lata e o Bebeto empatou. Na segunda latinha já tava dando um brilho.

No fim do primeiro tempo, o Cobrador me chamou pra irmos lá fora. Paramos na boca da rua.

“Visse a gente na TV?”

“Não. Acabei dormindo.”

“Eles vão vim aqui amanhã pra filmar e entrevistar o pessoal. Querem fazer um especial do caso pra segunda-feira. Vão falar com a galera que trabalha no mercado e os colegas da faculdade do teu irmão. Isso vai ajudar a chegar em mais pessoas. Quem sabe alguém pode ter alguma informação.”

“Entendi.”

“É só deixar eles filmarem a casa, o quarto… e vão te fazer umas perguntas.”

“Quais perguntas?”

“Você chegou a presenciar alguma discussão ou briga do casal?”

“Nunca.” Respondi pra repórter.

Távamos na cozinha e o cinegrafista filmava o quarto. Ouvi a porta do guarda-roupa ser aberta. O maluco devia tá mexendo nas papeladas.

“O que você acredita que tenha acontecido?”

“Acho que foram viajar.”

O Cobrador me cutucou como se eu precisasse criar uma narrativa mais dramática pra alimentar o mistério.

“E por que acha isso?”

“Ele tava com um galão de gasolina.”

“Você sabia disso?” virou o microfone pro Cobrador.

“É uma novidade pra mim.”

Depois de meia dúzia de perguntas cretinas, resolveram filmar o quarto da Denise. O Cobrador esperou a repórter e o cinegrafista se afastarem e ali mesmo na cozinha me disse:

“Estragasse tudo. Sabes disso, né?”

“A gente nem combinou nada.”

“Tás fudido na minha.” E bateu com o indicador no meu peito pra cada sílaba.

Choveu bastante durante a noite. Foi um temporal de balançar telha. Cheguei a pensar nos lugares onde meu irmão estaria.


 

VIII

 

Perdemos pra França. Foi uma fita feia pra caralho. Tomamos gol de caras que a gente nunca nem tinha ouvido falar.

Acordei com o barulho do meu pai colocando a marmita na bolsa e correndo pra pegar o ônibus. Tentei voltar a dormir, mas eu já tava desperto. Levantei, peguei a bacia e chamei o Tobias pra gente caçar gatanhão. Abri a porta e o Cobrador tava na varanda cortando a unha do pé. Preferi não ir em frente. Vou deixar o mangue pra mais tarde. Abri uma lata de sardinha e coloquei na cumbuca do meu amigo. Tomei um café e fumei no canto da janela enquanto esperava o vagabundo sair de casa.

Levou a Velha Coroca pra passear no quintal, depois dona Angélica veio e continuou a gincana pro merda ir pro trabalho. Esperei por mais uns cinco minutos e fui pra hípica.

Consegui um trocado pelo saco de serragem. No fim do turno caminhei até a locadora pra devolver o Super Punch-Out. Meus dedos tinham congelado nas trocas de baldes d’água e perdi a sensibilidade por um tempo. Acho que foi por isso que deixei a fita cair da mão umas duas vezes.

Fumei três palheiros no caminho de volta pra casa. No frio a vontade de fumar é maior. E com café então, vai tranquilo uns dez cigarros por dia. Foi o temporal da noite passada que fez a temperatura despencar assim.

Acenei pro Buba e pro Mudinho. Não cheguei a parar pra falar com eles, pois eu tava com muita fome. Noite passada foi arroz com calabresa, então hoje vai ser a mesma coisa.

Abri a porta de casa e Tobias tava morto. Era pra mim criar todo um drama falando sobre meus passos até ele e o ódio que senti do resto do mundo, mas a parada é que nunca houve um momento em que eu chegasse e ele não tivesse me esperando, fosse na rua ou em casa.

Tava deitado na frente da pia. Ajoelhei e passei a mão pelo seu corpo frio. Ergui a pata dianteira, começava a ficar dura. Usei o casaco pra cobrir o Tobias, assim ele ficaria mais aquecido. Peguei uma toalha de louça, enrolei na mão e tirei a camada de espuma da boca dele, não queria que se sufocasse. Sentei na cadeira, acendi um palheiro e esperei pela implosão, mas ela não veio. É tudo um grande teatro de merda.

Fui pro quarto, peguei o violão e voltei pra cozinha.

“Vem, Tobias.”

Ele sempre brinca de bater com a pata nas cordas do violão.

“Vem, Tobias.”

Toquei um dó maior pra ele levantar.

“Vem, Tobias, caralho. Levanta daí, porra.”

Nem um abano de rabo.

“Não vai vim? Vou guardar o violão.”

Continuou ali, não queria brincar.

Peguei no braço da viola com as duas mãos e ergui.

“Levanta.” bati com o violão no chão. Não aconteceu nada “Levanta.” bati com o violão na mesa. Rachou o corpo.

Bati com ele na pia. Na parede. Na geladeira. As cordas arrebentaram e o braço deslocou do resto do corpo. O violão foi pro saco.

Deitei e abracei Tobias. Eu também tava com frio. A porcaria da espuma voltou a sair da boca dele. Inclinei pra tirar um pouco com a mão e foi aí que vi algo avermelhado embaixo da mesa. Rastejei e enxerguei melhor. Era um bife. Parte dele tava mastigada. Tobias jamais roubaria comida. Levantei. E se tentasse, nunca teria forças e nem condições pra abrir a geladeira. Olhei pra janela da cozinha, a mesma janela que o Cobrador estilhaçou com a pedra. E se abrisse a geladeira, não encontraria bife, pois só tinha frango ensopado. O filho da puta envenenou meu amigo.

Peguei a pá no porão e comecei a cavar no meio da rua, entre nossas casas. Não medi, apenas fui no impulso. Como choveu muito na noite anterior, a terra tava lamacenta e cuspia areia pra todo lado a cada pazada minha. Fiz um buraco muito grande e brotou água da terra. Entrei em casa e peguei o Tobias no colo. Aproximei meu rosto e tentei sentir seu cheiro pela última vez. Não consegui. Nem nisso tinha mais vida. Amarrei o casaco nele pra deixar bem agasalhado e coloquei Tobias com cuidado no buraco. Cobri com terra o mais rápido possível pra impedir que a água surgisse e afogasse ele.

“Que porra tás fazendo?”

Era o Cobrador voltando do trabalho. Enfiei a mão na terra e arremessei uma pasta de lama em cima dele. O filho da puta esquivou bem, mas se sujou com alguns pingos. Ameaçou vir na minha. Peguei a pá e segurei forte com o cabo apoiado no ombro.

Ele tava com medo, eu podia ver nos olhos daquele lixo. Se afastou devagar, me chamou de maluco e entrou em casa.

Fui pro galpão. Buba e o Mudinho tavam marcando as madeiras.

“Fosse pegar gatanhão?” perguntou ao me ver sujo de lama.

“Faz uma cruz pra mim?”

“Não vem tirar com a minha cara hoje não, que eu tô com muito trabalho.”

“É pro Tobias.”

Parou o que tava fazendo. Guardou o lápis no bolso e olhou pro Mudinho, depois pra mim, baixou a cabeça e ficou em silêncio. Pedi uma cruz de tamanho que desse pra escrever o nome dele e a data. Buba desenhou o serviço pro Mudinho.

“Vamos lá pra cozinha. Deixa o Leandro ali fazendo.”

Pôs a mão no meu ombro e me acompanhou até a mesa.

“Senta aí. Tem café e cachaça de abacaxi.”

“Pode ser a cachaça. Consegue um cigarro?”

Acendeu dois Marlboro no fogão e me deu um. Tossi com a tragada. Colocou a garrafa na mesa e ficamos sentados, fumando e bebendo em pequenas doses. A cachaça tinha gosto de Ki-Suco de Velho Barreiro.

“Morreu como?” fumou.

“Envenenado.”

“Tens certeza?”

“Absoluta.” Bebi “Foi o Cobrador.”

“Que bicho merda. Não tenho muito pra ti dizer… Na real, eu nem sei o que dizer, mas lamento.”

“Eu também.” Fumei “Isso só vai acabar quando o meu irmão voltar.”

“Não pensa assim. Pode ser que demore.”

“Eu vou atrás dele.”

“Não fala merda. Bebe aí. Tu tá mal pelo que aconteceu. Mas daqui a pouco passa.”

“Falaram isso quando minha mãe morreu.” Fumei “Nunca passou. Essas coisas nunca passam. O cara só vai aprendendo a guardar, mas nunca passa.” Bebi e fumei.

O Mudinho chegou com o serviço pronto, colocou na mesa e bateu no meu ombro pra me consolar. Era simples como tinha de ser.

Enterrei a cruz sobre o monte de terra mexida e forcei com a pá. Fui pro chuveiro deixando a água quente amaciar minhas costas. Vesti minha melhor roupa de frio, abri a mochila, tirei os cadernos e tudo de inútil. Coloquei só o que valia a pena. Meu skate, as fitas K7 de Best of, o Super Nintendo com oito fitas e os pornôs. Peguei duas sacolas de mercado e joguei dentro duas calças, camisas, meias, cuecas e um casaco. Não consegui fechar a parte de cima da mochila porque o skate ficou pro lado de fora.

Olhei a casa uma última vez. Queria guardar cada parte dela na lembrança. Entrei no quarto do meu irmão e fiquei pouco tempo, não tinha nada ali. O mais importante tava no bolso, o cartaz de divulgação do show. Cheguei a parar na porta do quarto do meu pai, mas eu já disse, ele sempre chaveia aquela porra. Deixei um bilhete curto na mesa da cozinha. “Fui procurar meu irmão.”

Fugi pra encontrar. É preciso fugir.

A casa do Cobrador tava com as janelas fechadas. Olhei pra cruz, larguei as sacolas e encostei a palma da mão na terra, sentindo os grãos de areia deslizando. Me despedi do meu amigo. Era fim de tarde e o céu escurece mais cedo.

Adiante, o Mudinho se equilibrava na Monark pra sair do galpão e chegar na rodovia. Parou quando me viu. Acelerei o passo, não pra chegar até ele, mas pra não parar na frente da casa do Buba, pois se me visse com as trouxas, faria de tudo pra me impedir de fugir.

Apontou o dedo pra esquerda e pra direita e abriu os braços. Indiquei a direita com a cabeça. Deu um tapa na garupa e corri todo desengonçado.

Seguimos pelo acostamento da rodovia.

Nunca vou perdoar meu irmão por sumir no inverno. Minhas mãos tavam ocupadas com as sacolas, então precisei dar duas leves testadas nas costas do Mudinho. Pedalou pra trás e a Monark freou aos poucos. Desci e apontei pro portão da hípica. Olhou pras sacolas, ele sabia o que eu tava fazendo. Apenas balancei a cabeça e ele também. A gente se entendia. Larguei as coisas e aceitei a convenção. Nos abraçamos com a mesma força que me abraçou no enterro da minha mãe. Tentou pronunciar algo e confirmei com o polegar. Pegou o caminho dele. E eu o meu.


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